Lógica e argumentação
Desidério Murcho
"Uma das razões mais importantes para estudar filosofia é aprender a formar e defender pontos de vista próprios."
Mark Sainsbury
A argumentação é um instrumento sem o qual não podemos compreender melhor o mundo nem intervir nele de modo a alcançar os nossos objectivos; não podemos sequer determinar com rigor quais serão os melhores objectivos a ter em mente. Os seres humanos estão sós perante o universo; têm de resolver os seus problemas, enfrentar dificuldades, traçar planos de acção, fazer escolhas. Para fazer todas estas coisas precisamos de argumentos. Será que a Terra está imóvel no centro do universo? Que argumentos há a favor dessa ideia? E que argumentos há contra ela? Será que Bin-Laden é responsável pelo atentado de 11 de Setembro? Que argumentos há a favor dessa ideia? E que argumentos há contra? Será que foi o réu que incendiou propositadamente a mata? Será que o aborto é permissível? Será que Cristo era um deus? Será que criaremos mais bem-estar se o Estado for o dono da maior parte da economia? Será possível curar o cancro? E a Sida? O que é a consciência? Será que alguma vez houve vida em Marte? Queremos respostas a todas estas perguntas, e a muitas mais. Mas as respostas não nascem das árvores nem dos livros estrangeiros; temos de ser nós a procurar descobri-las. Para descobri-las temos de usar argumentos. E quando argumentamos podemos enganar-nos; podemos argumentar bem ou mal. É por isso que a lógica é importante. A lógica permite-nos fazer o seguinte:
- Distinguir os argumentos correctos dos incorrectos;
- Compreender por que razão uns são correctos e outros não; e
- Aprender a argumentar correctamente.
Os seres humanos erram. E não erram apenas no que respeita à informação de que dispõem. Erram também ao pensar sobre a informação de que dispõem, ao retirar consequências dessa informação, ao usar essa informação na argumentação. Muitos argumentos incorrectos não são enganadores: são obviamente incorrectos. Mas alguns argumentos incorrectos parecem correctos. Por exemplo, muitas pessoas sem formação lógica aceitariam o seguinte argumento:
Tem de haver uma causa para todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa.
Contudo, este argumento é incorrecto. A lógica ajuda-nos a compreender por que razão este argumento é incorrecto, apesar de parecer correcto. Chama-se "válido" a um argumento correcto e "inválido" a um argumento incorrecto. Do ponto de vista estritamente lógico não há qualquer distinção entre argumentos inválidos que são enganadores porque parecem válidos, e argumentos inválidos que não são enganadores porque não parecem válidos. Mas esta distinção é importante, e por isso alguns autores reservam o termo "falácia" para os argumentos inválidos que parecem válidos. Como é evidente, são as falácias que são particularmente perigosas. Os argumentos cuja invalidade é evidente não são enganadores e se todos os argumentos inválidos fossem assim, não seria necessário estudar lógica para saber evitar erros de argumentação.
Há muitos aspectos da argumentação que não são estudados pela lógica; por exemplo, alguns aspectos psicológicos. Algumas pessoas aceitam argumentos inválidos pensando que são válidos; outras, recusam argumentos válidos pensando que são inválidos. Há vários tipos de factores que explicam estas atitudes: factores psicológicos, sociológicos, históricos, patológicos, etc. A lógica não estuda estes aspectos da argumentação, que são estudados pela psicologia, sociologia, história e psiquiatria.
A lógica também não estuda o que as pessoas aceitam como argumentação válida, tal como a história não estuda o que as pessoas pensam sobre o passado. A história estuda o próprio passado e não o que as pessoas pensam dele, se bem que tenha em conta o que as pessoas pensam do passado — nomeadamente para determinar se o que as pessoas pensam do passado é ou não verdade. Do mesmo modo, a lógica não estuda o que as pessoas aceitam como argumentação válida, mas a própria argumentação válida, se bem que tenha em conta o que as pessoas aceitam como argumentação válida — nomeadamente para determinar se o que as pessoas aceitam como argumentação válida é ou não efectivamente argumentação válida.
"Argumento", "inferência", e "raciocínio" são termos praticamente equivalentes. Fazer uma inferência é apresentar um argumento, e raciocinar é retirar conclusões a partir de premissas. Pensar é em grande parte raciocinar. Um argumento é um conjunto de afirmações de tal forma organizadas que se pretende que uma delas, a que se chama "conclusão", seja apoiada pelas outras, a que se chamam "premissas". O que se pretende num argumento válido é que as suas premissas estejam de tal forma organizadas que "arrastem" consigo a conclusão. Uma boa analogia é pensar nas premissas e na conclusão como elos de uma corrente; se o argumento for válido, "puxamos" pelas premissas e a conclusão vem "agarrada" a elas; se for inválido, "puxamos" pelas premissas mas a conclusão não vem "agarrada" a elas.
Eis alguns exemplos de argumentos:
- Não podemos permitir o aborto porque é o assassínio de um inocente.
- Dado que os artistas podem fazer o que muito bem entenderem, é impossível definir a arte.
- Considerando que sem Deus tudo é permitido, é necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida.
- Se Sócrates fosse um deus, seria imortal. Mas dado que Sócrates não era imortal, não era um deus.
Nem sempre é fácil determinar qual é a conclusão e quais são as premissas de um dado argumento; mas esse é o primeiro passo para que o argumento possa ser discutido. No caso do argumento 1 a conclusão é "Não podemos permitir o aborto" e a premissa é "O aborto é o assassínio de um inocente". No caso do argumento 2 a conclusão é "É impossível definir a arte" e a premissa é "Os artistas podem fazer o que muito bem entenderem". O argumento 3 é mais prolixo: a conclusão é "É necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida" e a premissa é "Sem Deus tudo é permitido".
Para tornar a discussão de argumentos mais fácil podemos reformulá-los, separando claramente cada uma das premissas da conclusão. Chama-se "representação canónica" a esta maneira de representar os argumentos. O argumento 4 pode ser canonicamente representado como se segue:
Se Sócrates fosse um deus, seria imortal.
Sócrates não era imortal.
Logo, Sócrates não era um deus.
É evidente que esta forma de apresentar argumentos é artificiosa. Mas é o primeiro passo para que se possa discutir argumentos, pois só assim se torna claro quais são as premissas e qual é a conclusão. Esta forma de representar argumentos é já fruto do trabalho de análise de argumentos.
Reformular argumentos, apresentando-os na sua forma canónica é um exercício imprescindível no estudo da lógica. Claro que os argumentos dados para reformular não poderão ser demasiado complexos, pois só alguém já familiarizado com a lógica ou um especialista poderá reformular argumentos cuja estrutura seja demasiado complexa. Mas não poderão ser tão simples que surjam como artificialismos sem qualquer relação com a argumentação real que se encontra nos ensaios dos filósofos. O objectivo do estudo da lógica é desenvolver as seguintes capacidades, face a um ensaio filosófico ou outro:
- Identificar a conclusão ou conclusão principal;
- Identificar as premissas, incluindo eventuais premissas implícitas;
- Distinguir diferentes argumentos, explícitos ou aludidos, que o ensaio apresenta.
Estas capacidades permitem discutir as ideias dos filósofos e adoptar uma posição crítica. Sem ela, resta a paráfrase e o monólogo sem rumo, a que habitualmente se chama "comentário de texto" e "problematização".
Nos parágrafos precedentes definiu-se e caracterizou-se a lógica, definindo a noção de argumento, apresentando vários exemplos, e dando uma ideia intuitiva de argumento válido e inválido. É desta forma que tem de se proceder. Definir a lógica através da raiz etimológica da palavra "lógica" nada esclarece. E dar exemplos de quebra-cabeças, que muitas vezes não envolvem quaisquer argumentos, mas apenas truques e trocadilhos, é enganador. A lógica deve ser apresentada como o que realmente é: um estudo de alguns aspectos importantes da argumentação, que nos permite distinguir os argumentos válidos dos inválidos. A lógica não é uma espécie de "jogo simbólico" nem de "quebra-cabeças".
Finalmente a lógica não é o estudo das condições de "coerência" do pensamento. A lógica estuda a validade e não a coerência da argumentação. Um argumento pode ser perfeitamente coerente e ser inválido, como no exemplo seguinte:
Se a vida não é sagrada, o aborto é permissível.
Mas a vida é sagrada.
Logo, o aborto não é permissível.
Extraído de O Lugar da Lógica na Filosofia, de Desidério Murcho (Plátano, 2003)
in http://criticanarede.com/, 26-10-2010
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