Como se lê um ensaio de filosofia
Vais ter dificuldade em compreender alguns dos textos que iremos ler. Isto é em parte devido a esses textos discutirem ideias abstractas em que não estás acostumado a pensar. Eles podem também usar vocabulário técnico que é novo para ti. Algumas vezes não será evidente qual é o argumento geral do texto. A prosa pode ser complicada e podes precisar de separar cada frase do texto. Eis algumas indicações para tornar o processo mais fácil e mais eficaz.
Índice
Lê superficialmente o texto para encontrar a sua conclusão e ter uma ideia da sua estrutura
Quando se tenta ler um texto difícil, uma boa maneira de começar é lendo primeiro superficialmente o texto para identificar a conclusão principal do autor. Tem em especial atenção os parágrafos de abertura e de fecho, uma vez que frequentemente os autores dir-te-ão aí aquilo a favor de que tencionam argumentar. Quando souberes qual é a conclusão principal do autor, tenta reescrevê-la com as tuas próprias palavras. Isto ajudar-te-á a ter a certeza de que compreendes realmente aquilo que o autor pretende demonstrar.
Quando estiveres a ler superficialmente o texto, tenta também ter uma compreensão geral do que trata cada parte da discussão. Qual é a estrutura do texto? Às vezes os autores dizem no início do texto como será a sua argumentação. Isto torna o teu trabalho mais fácil.
Os textos que lemos nem sempre têm uma estrutura fácil de compreender. Nem sempre terão a forma:
Esta é a conclusão que quero que aceites. Aqui está o argumento para essa conclusão...
Os filósofos frequentemente fornecem argumentos auxiliares, argumentos para premissas importantes a que apelam para suportar a conclusão principal. Por exemplo, a discussão do autor pode ter a forma:
A conclusão que quero que aceites é A. O meu argumento para essa conclusão é o seguinte: B e C são verdadeiros, e se B e C são verdadeiros, então A tem de ser também verdadeiro. É geralmente aceite que B é verdadeiro. Contudo, é controverso se C é verdadeiro. Penso que deves aceitar C pelas razões seguintes...
Aqui o argumento principal do autor é para suportar a conclusão A. Ao defender A ele avança um argumento auxiliar para suportar C. Tenta identificar estes argumentos auxiliares e as alegações que pretendem suportar, evitando confundir um destes argumentos auxiliares com o argumento principal do autor.
Os textos podem ser igualmente complexos de outras formas. Nem tudo o que o autor diz é uma conclusão positiva ou uma premissa para suportar a sua conclusão. Às vezes ele suportará o seu ponto de vista com uma experiência mental. Outras argumentará a favor de uma distinção em que o seu ponto de vista se apoia. Outras defenderá que o ponto de vista ou os argumentos de outro filósofo devem ser rejeitados. Outras ainda defenderá um ponto de vista contra as objecções de outra pessoa.
Está atento a palavras como estas enquanto lês:
- porque, desde, dado este argumento
- assim, portanto, por isso, segue-se que, consequentemente
- no entanto, contudo, mas
- em primeiro lugar, por outro lado
Estes são indicadores que te ajudam a perceber a estrutura da discussão. Por exemplo, um artigo filosófico pode ter este aspecto:
O filósofo X avançou o argumento seguinte contra o dualismo...O dualista tem duas respostas ao argumento de X. Primeiro...Contudo, esta resposta tem problemas, porque...Uma resposta melhor é dizer...X pode ser tentado a contrapor o seguinte...Contudo...
e assim por diante. As palavras "primeiro" e "contudo" e "uma resposta melhor" tornam fácil ver para onde vai a discussão. Vais querer pôr também indicadores como estes nos teus próprios escritos filosóficos.
Eis outro exemplo:
O céptico diz não podemos dizer se estamos a ver as coisas como elas realmente são, ou se somos cérebros numa cuba alimentados com experiências falsas, como os habitantes de The Matrix.Y fez a seguinte objecção ao céptico... Por isso, concluo, não temos nenhuma razão para pensar que a nossa situação é tão má quanto o céptico diz.É tentador responder desta maneira ao céptico, mas não creio que funcione, pela seguinte razão...Y pode responder a este problema de uma de duas maneiras. A primeira é... Contudo, esta resposta falha porque...A segunda maneira é... Contudo, esta resposta também falha porque...Pelo que no fim de contas penso que a objecção de Y ao céptico não pode ser mantida. Claro que, não sou um céptico. Concordo com Y que a conclusão do céptico é falsa. Mas penso que temos que reflectir mais no assunto para ver qual é realmente o defeito do raciocínio do céptico.
Neste texto, o autor passa a maior parte do tempo a defender o céptico contra as objecções de Y, e a examinar as respostas que Y pode dar. A principal conclusão do autor é que as objecções de Y ao céptico não funcionam. (Nota: A conclusão principal não é que o cepticismo é verdadeiro.)
Volta atrás e lê o texto cuidadosamente
Quando tiveres percebido qual é a conclusão principal do argumento e qual é a estrutura global do texto, volta atrás e lê o artigo cuidadosamente. Toma atenção à forma como as várias partes se encaixam umas nas outras.
- Mais importante, percebe quais são os argumento(s) centrais do autor. Que razões é que ele apresenta em suporte das suas conclusões? Em que parte do texto é que apresenta estas razões?
Tem também em atenção o seguinte:
- Aponta onde é que o autor diz explicitamente o que entende por um determinado termo.
- Aponta que distinções o autor introduz ou defende.
- Tem em conta em particular as assunções não justificadas em que pensas que o autor se apoia.
- Considera várias interpretações do que ele diz. Há alguma ambiguidade importante de que a sua argumentação não dê conta?
Tudo isto te ajudará a compreender melhor o texto e será crucial quando tentares avaliar o argumento do autor e decidir se deves aceitar ou não a sua conclusão.
Podes nas tuas notas esboçar as "peças" argumentativas mais importantes. Desenha esquemas de modo a representar a forma como achas que estas peças se encaixam. Se não o podes fazer, então precisas de voltar a ler o texto de modo a compreender melhor o que o autor defende.
Deves estar preparado para ter de ler um texto filosófico mais do que uma vez. Eu faço filosofia há mais de dez anos e ainda tenho que ler os artigos várias vezes antes que consiga compreendê-los completamente. Digerir intelectualmente um texto de filosofia demora tempo e exige esforço e concentração. É mais que certo que não vais compreender tudo num texto a primeira vez que o lês e podem existir partes do texto que não compreenderás mesmo depois de o ler várias vezes. Deves pôr questões sobre essas partes do texto (nas aulas ou depois das aulas, como queiras). Podes dizer:
O que é que se passa na página 13? Descartes diz X, mas não percebo como isto se ajusta com a sua anterior alegação Z. X é suposto seguir-se de Z? Ou ele está a tentar aqui apresentar um argumento para Z? Se é isso, porque é que ele pensa que X é uma razão a favor de Z?
Avalia os argumentos do autor
Como é óbvio, só estarás em condições de avaliar os argumentos do autor quando tiveres feito o trabalho necessário para perceber o que o autor está realmente a dizer e como os seus argumentos funcionam.
Quando o tiveres feito, podes começar a fazer perguntas como estas: Concordas com o autor? Se não, o que é que pensas que está errado no seu raciocínio? Apela ele a alguma premissa que penses ser falsa? (Porque pensas que é falsa?) Há alguma assunção que o autor não explicite, mas que pensas ser falsa? O seu argumento é confuso ou mal dirigido?
Sentirás com frequência que os debates que examinamos são muito confusos e que não sabes em que argumentos acreditar. Não há forma de escapar a isto. Sinto-me assim constantemente. Tudo o que posso dizer é que se trabalhares muito, serás capaz de te orientares na confusão. Começas a perceber como é que os diferentes pontos de vista se relacionam mutuamente e quais são os seus prós e contras. Podes até chegar à conclusão de que as coisas são mais confusas do que pensavas, que são frustrantes e que tens de voltar aos esquemas. Isto pode repetir-se várias vezes e podes nunca chegar a uma conclusão definitiva. Mas cada vez que tentas entender o debate, descobres que percebes as coisas um pouco melhor. É assim que progredimos em filosofia. Esse é o único caminho.
Às vezes uma questão filosófica conduz a três outras, que por sua vez conduzem a outras... e não podes explorar essas ligações imediatamente. De modo que tens que aprender a passar sem respostas definitivas. Podes não ser capaz de chegar a uma conclusão segura acerca de se deves aceitar um argumento filosófico, por que isso depende de outras questões P, Q, e R, que ainda não abordaste. Isto é normal. Os teus próprios professores de filosofia sentem-se frequentemente desse modo a propósito de muitos argumentos que leram.
Outras vezes, podes estar seguro de que um argumento é defeituoso, mas não tens tempo nem meios para compreender, ou explicar e sustentar tudo o que pensas estar errado no argumento. Nesses casos, podes provisoriamente aceitar uma das premissas do argumento, e avançar para outras que penses serem mais importantes ou mais fáceis de criticar. (É por este motivo que frequentemente ouves os filósofos dizerem que "Mesmo se assumirmos por hipótese tal e tal, continuo a pensar que o argumento de X falha, porque...")
Tradução de Álvaro Nunes
Agradeço a James Pryor ter gentilmente permitido a tradução e publicação do seu texto.
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