Um outro olhar sobre o mundo

Um outro olhar sobre o mundo

domingo, 31 de outubro de 2010

Como ler um ensaio de Filosofia

Como se lê um ensaio de filosofia

Vais ter dificuldade em compreender alguns dos textos que iremos ler. Isto é em parte devido a esses textos discutirem ideias abstractas em que não estás acostumado a pensar. Eles podem também usar vocabulário técnico que é novo para ti. Algumas vezes não será evidente qual é o argumento geral do texto. A prosa pode ser complicada e podes precisar de separar cada frase do texto. Eis algumas indicações para tornar o processo mais fácil e mais eficaz.

Índice



Lê superficialmente o texto para encontrar a sua conclusão e ter uma ideia da sua estrutura

Quando se tenta ler um texto difícil, uma boa maneira de começar é lendo primeiro superficialmente o texto para identificar a conclusão principal do autor. Tem em especial atenção os parágrafos de abertura e de fecho, uma vez que frequentemente os autores dir-te-ão aí aquilo a favor de que tencionam argumentar. Quando souberes qual é a conclusão principal do autor, tenta reescrevê-la com as tuas próprias palavras. Isto ajudar-te-á a ter a certeza de que compreendes realmente aquilo que o autor pretende demonstrar.
Quando estiveres a ler superficialmente o texto, tenta também ter uma compreensão geral do que trata cada parte da discussão. Qual é a estrutura do texto? Às vezes os autores dizem no início do texto como será a sua argumentação. Isto torna o teu trabalho mais fácil.
Os textos que lemos nem sempre têm uma estrutura fácil de compreender. Nem sempre terão a forma:
Esta é a conclusão que quero que aceites. Aqui está o argumento para essa conclusão...
Os filósofos frequentemente fornecem argumentos auxiliares, argumentos para premissas importantes a que apelam para suportar a conclusão principal. Por exemplo, a discussão do autor pode ter a forma:
A conclusão que quero que aceites é A. O meu argumento para essa conclusão é o seguinte: B e C são verdadeiros, e se B e C são verdadeiros, então A tem de ser também verdadeiro. É geralmente aceite que B é verdadeiro. Contudo, é controverso se C é verdadeiro. Penso que deves aceitar C pelas razões seguintes...
Aqui o argumento principal do autor é para suportar a conclusão A. Ao defender A ele avança um argumento auxiliar para suportar C. Tenta identificar estes argumentos auxiliares e as alegações que pretendem suportar, evitando confundir um destes argumentos auxiliares com o argumento principal do autor.
Os textos podem ser igualmente complexos de outras formas. Nem tudo o que o autor diz é uma conclusão positiva ou uma premissa para suportar a sua conclusão. Às vezes ele suportará o seu ponto de vista com uma experiência mental. Outras argumentará a favor de uma distinção em que o seu ponto de vista se apoia. Outras defenderá que o ponto de vista ou os argumentos de outro filósofo devem ser rejeitados. Outras ainda defenderá um ponto de vista contra as objecções de outra pessoa.
Está atento a palavras como estas enquanto lês:
  • porque, desde, dado este argumento
  • assim, portanto, por isso, segue-se que, consequentemente
  • no entanto, contudo, mas
  • em primeiro lugar, por outro lado
Estes são indicadores que te ajudam a perceber a estrutura da discussão. Por exemplo, um artigo filosófico pode ter este aspecto:
O filósofo X avançou o argumento seguinte contra o dualismo...
O dualista tem duas respostas ao argumento de X. Primeiro...
Contudo, esta resposta tem problemas, porque...
Uma resposta melhor é dizer...
X pode ser tentado a contrapor o seguinte...
Contudo...
e assim por diante. As palavras "primeiro" e "contudo" e "uma resposta melhor" tornam fácil ver para onde vai a discussão. Vais querer pôr também indicadores como estes nos teus próprios escritos filosóficos.
Eis outro exemplo:
O céptico diz não podemos dizer se estamos a ver as coisas como elas realmente são, ou se somos cérebros numa cuba alimentados com experiências falsas, como os habitantes de The Matrix.
Y fez a seguinte objecção ao céptico... Por isso, concluo, não temos nenhuma razão para pensar que a nossa situação é tão má quanto o céptico diz.
É tentador responder desta maneira ao céptico, mas não creio que funcione, pela seguinte razão...
Y pode responder a este problema de uma de duas maneiras. A primeira é... Contudo, esta resposta falha porque...
A segunda maneira é... Contudo, esta resposta também falha porque...
Pelo que no fim de contas penso que a objecção de Y ao céptico não pode ser mantida. Claro que, não sou um céptico. Concordo com Y que a conclusão do céptico é falsa. Mas penso que temos que reflectir mais no assunto para ver qual é realmente o defeito do raciocínio do céptico.
Neste texto, o autor passa a maior parte do tempo a defender o céptico contra as objecções de Y, e a examinar as respostas que Y pode dar. A principal conclusão do autor é que as objecções de Y ao céptico não funcionam. (Nota: A conclusão principal não é que o cepticismo é verdadeiro.)
Volta atrás e lê o texto cuidadosamente

Quando tiveres percebido qual é a conclusão principal do argumento e qual é a estrutura global do texto, volta atrás e lê o artigo cuidadosamente. Toma atenção à forma como as várias partes se encaixam umas nas outras.
  • Mais importante, percebe quais são os argumento(s) centrais do autor. Que razões é que ele apresenta em suporte das suas conclusões? Em que parte do texto é que apresenta estas razões?
Tem também em atenção o seguinte:
  • Aponta onde é que o autor diz explicitamente o que entende por um determinado termo.
  • Aponta que distinções o autor introduz ou defende.
  • Tem em conta em particular as assunções não justificadas em que pensas que o autor se apoia.
  • Considera várias interpretações do que ele diz. Há alguma ambiguidade importante de que a sua argumentação não dê conta?
Tudo isto te ajudará a compreender melhor o texto e será crucial quando tentares avaliar o argumento do autor e decidir se deves aceitar ou não a sua conclusão.
Podes nas tuas notas esboçar as "peças" argumentativas mais importantes. Desenha esquemas de modo a representar a forma como achas que estas peças se encaixam. Se não o podes fazer, então precisas de voltar a ler o texto de modo a compreender melhor o que o autor defende.
Deves estar preparado para ter de ler um texto filosófico mais do que uma vez. Eu faço filosofia há mais de dez anos e ainda tenho que ler os artigos várias vezes antes que consiga compreendê-los completamente. Digerir intelectualmente um texto de filosofia demora tempo e exige esforço e concentração. É mais que certo que não vais compreender tudo num texto a primeira vez que o lês e podem existir partes do texto que não compreenderás mesmo depois de o ler várias vezes. Deves pôr questões sobre essas partes do texto (nas aulas ou depois das aulas, como queiras). Podes dizer:
O que é que se passa na página 13? Descartes diz X, mas não percebo como isto se ajusta com a sua anterior alegação Z. X é suposto seguir-se de Z? Ou ele está a tentar aqui apresentar um argumento para Z? Se é isso, porque é que ele pensa que X é uma razão a favor de Z?
Avalia os argumentos do autor

Como é óbvio, só estarás em condições de avaliar os argumentos do autor quando tiveres feito o trabalho necessário para perceber o que o autor está realmente a dizer e como os seus argumentos funcionam.
Quando o tiveres feito, podes começar a fazer perguntas como estas: Concordas com o autor? Se não, o que é que pensas que está errado no seu raciocínio? Apela ele a alguma premissa que penses ser falsa? (Porque pensas que é falsa?) Há alguma assunção que o autor não explicite, mas que pensas ser falsa? O seu argumento é confuso ou mal dirigido?
Sentirás com frequência que os debates que examinamos são muito confusos e que não sabes em que argumentos acreditar. Não há forma de escapar a isto. Sinto-me assim constantemente. Tudo o que posso dizer é que se trabalhares muito, serás capaz de te orientares na confusão. Começas a perceber como é que os diferentes pontos de vista se relacionam mutuamente e quais são os seus prós e contras. Podes até chegar à conclusão de que as coisas são mais confusas do que pensavas, que são frustrantes e que tens de voltar aos esquemas. Isto pode repetir-se várias vezes e podes nunca chegar a uma conclusão definitiva. Mas cada vez que tentas entender o debate, descobres que percebes as coisas um pouco melhor. É assim que progredimos em filosofia. Esse é o único caminho.
Às vezes uma questão filosófica conduz a três outras, que por sua vez conduzem a outras... e não podes explorar essas ligações imediatamente. De modo que tens que aprender a passar sem respostas definitivas. Podes não ser capaz de chegar a uma conclusão segura acerca de se deves aceitar um argumento filosófico, por que isso depende de outras questões P, Q, e R, que ainda não abordaste. Isto é normal. Os teus próprios professores de filosofia sentem-se frequentemente desse modo a propósito de muitos argumentos que leram.
Outras vezes, podes estar seguro de que um argumento é defeituoso, mas não tens tempo nem meios para compreender, ou explicar e sustentar tudo o que pensas estar errado no argumento. Nesses casos, podes provisoriamente aceitar uma das premissas do argumento, e avançar para outras que penses serem mais importantes ou mais fáceis de criticar. (É por este motivo que frequentemente ouves os filósofos dizerem que "Mesmo se assumirmos por hipótese tal e tal, continuo a pensar que o argumento de X falha, porque...")

Tradução de Álvaro Nunes
Agradeço a James Pryor ter gentilmente permitido a tradução e publicação do seu texto.

Sem comentários: