Por ter crescido com as telenovelas brasileiras, não
consegui ainda entranhar as suas congéneres nacionais. Confesso que as minhas tentativas
têm sido pouco mais que nulas, não suporto o amadorismo e cabotinismo de alguns
intervenientes, mas sobretudo a falta daquela luminosidade encantatória que as
nossas não têm. Diz um amigo mais entendido que à imagem lhe colocam os
portugueses um “filtro de saída”, dando-lhe aquele ar baço ou insosso. O motivo
cai no segredo dos deuses e a culpa bem pode ser minha. Bem sei que as
telenovelas não são todas iguais e a generalização precipitada é algo de que
devemos sempre acautelar-nos. De resto, faz tempo que não vejo telenovelas, de
umas e de outras.
Mas vem isto a propósito de Gabriela, não a original dos anos
setenta com a imor(t)al Sónia Braga, de que retenho apenas breves mas
agradáveis flashes, provavelmente construções minhas, mas o remake de 2012 com a mais robusta (ou
grosseira) Juliana Paes. Vem isto a propósito do último episódio desta nova Gabriela e de como há frases ou
instantes que nos apanham desprevenidos, se arrastam em nós e teimam em não nos
largar. Como que nos suspendem o real imediato, mas numa suspensão reflexiva, e
não pasmada, que pode brotar do mais corriqueiro ao nosso redor. Não que algo
com origem num texto de Jorge Amado possa ser corriqueiro, longe disso.
No último episódio de Gabriela,
mesmo no final, encontramos o Coronel Ramiro Bastos (António Fagundes) sentado
na praça central de Ilhéus, uma daquelas pequenas cidades brasileiras de
fantasia que acreditamos reais, à espera que, a mando seu, seja assassinado o
Doutor Mundinho Falcão, rival político e desencaminhador de netas prendadas.
Apanha sol na praça, como de costume, mas desta vez para não levantar
suspeitas, em jeito de álibi. A tocaia
está montada e Ramiro, Coronel autoproclamado, está feliz, as coisas começam a
endireitar-se, ou começarão, mal o desafiador seja eliminado e tudo volte ao
“como era antes”, à ordem normal das coisas. Está feliz e fala sozinho, dessas
coisas que só nas novelas é possível sem passar por idiota, na verdade fala
para nós, explicitando-nos um estado de espírito que nós já adivinhamos, que já
sabemos. Depois de décadas como senhor absoluto do destino de um povo,
prepara-se para ganhar as suas últimas eleições e partir para uma justa reforma
junto da “sua” Maria Machadão, puta de sempre e amante sempre adiada.
Agora é o momento.
“Demorei para decidir, mas nunca é
tarde”, diz, “nunca é tarde”!
Depois, uma dor súbita no lado do
coração, um esgar no rosto, uma impressão no braço esquerdo, resiste, tenta
sobrepor-lhe a felicidade, aguenta, não consegue, ele sabe, o mundo cai-lhe à
volta, fica difuso o que há pouco era claro e brilhava, é o futuro que lhe
escapa naquele banco ao sol…
O “nunca é tarde” de ainda agora
transfigurado em “sempre é tarde”.
“Sempre é tarde!”, diz…
Escapa-se-lhe.
O passado a tombar o futuro, o que
não foi a comer o que será e um último pensamento para a neta.
Ramiro morre.
E morre sabendo que foi débil. Débil
na vontade de inaugurar uma outra pessoa que poderia ter sido. Qualquer momento
é tão bom como qualquer outro para começar. Qualquer dia. Hoje não, amanhã, ou
depois, só mais isto, não posso deixar de… Como a linha do horizonte que se
afasta à medida que nos aproximamos. Continuamos a deixar passar o momento.
Qualquer dia. Amanhã é também um bom dia para continuar a adiar.
Indefinidamente, sem repararmos que o passado morde cada vez mais forte, até ao
dia em que nos apanha, num banco de jardim ao sol, num café a passar os olhos
pelas notícias do dia, na cama enquanto fazemos planos para aquela viagem,
aquele amor, o futuro, hoje como antes, muito antes,
quando o futuro era só possibilidade, sem por um instante pensar que é um
futuro que não virá mais.
Como Ramiro.
(ver aqui em baixo a cena de que se fala)
http://globotv.globo.com/rede-globo/gabriela/v/coronel-ramiro-bastos-morre/2211055/