Um outro olhar sobre o mundo

Um outro olhar sobre o mundo

domingo, 11 de março de 2012

A difícil arte de ser maior


A propósito de uma troca de argumentos com dois dependentes religiosos à porta de minha casa, lembrei-me de um texto de Immanuel Kant que costumo atirar de chofre ao cérebro adolescente no início do ano lectivo a pretexto do que é fazer Filosofia (o como vem um pouco mais tarde).
Sirvo-me de Kant contra essa mania ou necessidade que tem o homem de encontrar um messias de verdade em riste. Contra essa miserável tendência que o homem tem de encontrar quem lhe diga o que pensar e o que fazer. Contra essa tendência de ficar à espera de quem avança e criticar o modo de andar daquele que se decide a fazê-lo, que assim não, que não adianta, se ao menos fosse de outra forma, se calhasse noutro dia, se… Aí ninguém me parava, eeeepá, porque em chegando-me a mostarda ao nariz eu faço e aconteço, que a mim ninguém me cala! Onde é que eles estão? Onde? Quantos são? Para quando? Eeeepá, nesse dia tenho aquela coisa combinada.
Sobre esta propensão para ser menor e gostar, bem melhor do que eu, Kant:
“lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.
A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio, continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer semelhante tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, porque não está habituado ao movimento livre. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro.
Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade. (…) Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente com os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento.
Mas, para esta ilustração, nada mais se exige do que a liberdade; e, claro está, a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, porém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines! Diz o oficial: não raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade.”
 ENTÃO COMO É?
 (Immanuel KANT, in Resposta à pergunta: “Que é o Iluminismo?”, tradução de Artur Morão)

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