Um outro olhar sobre o mundo

Um outro olhar sobre o mundo

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Relatório 2010. Alunos não sabem raciocinar nem escrever

Estudo do Ministério da Educação em 1700 escolas revela a dificuldade dos alunos em resolver exercícios que não sejam básicos
 
Estruturar um texto encadeado, explicar um raciocínio com lógica, utilizar uma linguagem rigorosa ou articular diferentes conceitos da mesma disciplina são incapacidades que percorrem os alunos do 8.o ao 12.o ano de escolaridade, seja na Matemática, seja na Língua Portuguesa ou na Biologia. Mais que dominar a matéria, a grande dificuldade dos estudantes das escolas básicas e secundárias é expressar por escrito as suas ideias e os conhecimentos que adquiriram nas aulas. Esta é a principal conclusão do Relatório 2010 do Gabinete de Avaliação Educacional (Gave).

Poucas semanas depois de o estudo do PISA revelar que Portugal é o país da OCDE que mais progrediu na educação, chega agora o relatório do Gave que vem demonstrar que os alunos portugueses afinal estão ainda longe de conseguir desempenhar tarefas tão simples como, por exemplo, interpretar um texto poético, solucionar um exercício matemático com mais de duas etapas ou enfrentar um enunciado que não seja simples e curto.

A equipa do Ministério da Educação avaliou os conhecimentos dos alunos em 500 escolas secundárias e em 1200 estabelecimentos com o 3.o ciclo do ensino básico. Os testes intercalares do Gave, que começaram no ano lectivo de 2005/06, foram aplicados às disciplinas de Matemática e de Língua Portuguesa (no ensino básico) e ainda às cadeiras de Matemática A, Física e Química A e Biologia e Geologia do ensino secundário.

Nas disciplinas que envolveram contas (Matemática e Física/Química), os adolescentes só conseguiram completar correctamente os exercícios quando o desafio passou por resolver "cálculos elementares". O bom desempenho, aliás, está "fortemente associado" aos enunciados curtos e aos textos simples, conclui o relatório que o i consultou.

Na disciplina de Língua Portuguesa do 9.o ano, as maiores dificuldades estão em utilizar a língua de forma correcta. As lacunas são de ordem gramatical, mas também de construção de frases e textos que tenham lógica e coerência. A resolução de problemas na Matemática do 3.o ciclo é o ponto fraco dos alunos, mas as derrapagens também aconteceram quando foi preciso construir respostas com várias etapas de resolução. Definir estratégias para encontrar a solução de um determinado exercício matemático são dificuldades que se acentuam sempre que os enunciados são mais longos, avisam os técnicos do Ministério da Educação.

Secundário. Escrever textos explicativos em que é necessário descrever raciocínios e explicar as estratégias adoptadas para justificar as respostas é uma das grandes deficiências que os especialistas do Gave encontraram em todas as disciplinas avaliadas no secundário. A falta de rigor científico e a linguagem desadequada foram falhas detectadas por todas as equipas que monitorizaram e avaliaram o desempenho dos alunos. Sempre que foi preciso seleccionar a informação e construir um texto que traduzisse um conjunto de ideias próprias, os alunos revelaram "grandes dificuldades".

Na Matemática A do secundário, as fraquezas dos alunos tornaram-se mais evidentes quando tiveram de usar conceitos e estratégias menos treinados nas salas de aula ou então quando foram desafiados a interligar conceitos ou enfrentar enunciados longos. "Não deixam também de ser significativas as dificuldades detectadas nos problemas que envolvem maior número de cálculos e apresentação de raciocínios demonstrativos", alertam os especialistas no relatório de 2010.

Conseguir articular a informação fornecida nas provas e os conhecimentos necessários para responder a determinadas questões é igualmente uma tarefa a que poucos alunos conseguiram corresponder com êxito nos testes intermédios de Biologia e Geologia do 10.o e 11.o anos de escolaridade.

Nas disciplinas de Física e Química A, o desempenho dos alunos decresceu sempre que se exigiu uma avaliação crítica das informações contidas nas provas. Articular várias competências ou fazer cálculos que envolvam duas ou mais etapas são outras fragilidades dos alunos portugueses.

por Kátia Catulo , Publicado em 31 de Dezembro de 2010  

 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

100 anos sem Mark Twain

Há cem anos a notícia da morte de Mark Twain não foi exagerada

Este texto poderia começar com uma das dezenas de citações famosas de Mark Twain, o autor que considerava deixar de fumar "a coisa mais fácil do mundo": ele próprio o tinha feito uma porção de vezes. Mas houve coisas realmente importantes na sua história. Samuel Clemens, nome de baptismo, foi um dos mais importantes autores americanos do século XIX, que através do sarcasmo e da ironia, descreveu e criticou a sociedade americana, bem como toda a espécie humana. Não poupou governos, Igreja, políticos e riquezas acumuladas. Faz amanhã cem anos que Mark Twain morreu, quatro meses depois da sua filha mais nova. Tinha 74 anos e deixou mais de 30 livros publicados (entre eles "As Aventuras de Huckleberry Finn", de 1884), centenas de contos e ensaios.

Um século depois, Tom Sawyer continua a fazer parte do imaginário de todos. O personagem, inspirado em três amigos de Mark Twain, vive aventuras reais (sempre descalço), assumidamente baseadas na vida do escritor.

Twain vs Sawyer
Twain tinha 12 anos quando abandonou a escola e decidiu tornar-se aprendiz numa gráfica. A escola não era, aliás, o seu lugar preferido, como deixa bem claro uma das suas famosas citações: "Nunca deixei que a escola atrapalhasse a minha educação."

Da mesma forma, Tom Sawyer é um miúdo de 12 anos que considera a escola uma perda de tempo, não desperdiçando uma oportunidade de fazer gazeta. Mesmo que as consequências sejam castigos severos, dos quais, de alguma forma, ele consegue quase sempre escapar.

Mississípi
O rio é um dos elementos quase sempre presentes nas histórias de Twain. Tom Sawyer e Huckleberry Finn sobem e descem o rio de jangada, pescam nas margens e acreditam ser piratas a sério.

O escritor, que cresceu na margem do rio não foi um pirata mas chegou a ser piloto de um barco no Mississípi A aventura, porém, durou pouco: com o estourar da Guerra Civil, em 1861, o tráfico fluvial foi interrompido naquela região dos EUA.

Aventuras
Clemens foi um homem destemido. Assim que a sua carreira de piloto deu para o torto, o escritor rumou ao Nevada, em busca de riqueza. Contagiado pela febre da prata, participou na corrida ao metal precioso e tornou-se garimpeiro. Falhou. No entanto, e pela primeira vez, teve contacto com várias tribos de nativos americanos, experiência que passaria, mais tarde, para o papel. Tom Sawyer e Huck Finn são sinónimos de aventura.

Depois de terem fugido para se tornarem piratas a sério e de convencerem toda a cidade de São Petersburgo que tinham morrido, resolveram procurar um tesouro numa casa abandonada. Mas em vez de riquezas sem preço, dão de caras com o seu pior pesadelo: Joe, o índio.

A bíblia
Se Tom Sawyer vendia aos amigos os bilhetes distribuídos na catequese, como prémio para quem sabia os versículos bíblicos de cor, Mark Twain não fica atrás no que se refere ao escárnio da religião. Tom Sawyer sofria horrores a tentar decorar passagens da Bíblia e estava convencido que David e Golias tinham sido dois discípulos de Jesus. Twain optou por escrever cartas aos anjos, encarnando um outro anjo caído em desgraça: Satanás.

Em "Cartas da Terra", uma obra póstuma - conjunto de ficção, ensaios e notas do autor - Twain coloca Satanás a viver entre os homens, como um castigo imposto por Deus. A humanidade torna-se imediatamente objecto de estudo pelo tal do senhor das trevas: "O homem é uma curiosidade maravilhosa, no seu pior, é inqualificável, inimaginável. Apesar disso, intitula-se, de modo lisonjeiro e sincero, a "'mais nobre obra de Deus'". Nem Adão e Eva escapam ao sarcasmo de Twain, na obra "Os Diários de Adão e Eva".

A crítica
Se o livro "As Aventuras de Tom Sawyer" é muito mais do que uma história infanto-juvenil, "As Aventuras de Huckleberry Finn" é das obras de Twain mais críticas da sociedade americana.

Em "Tom Sawyer" o preconceito é retratado com Joe, o índio: o indiscutível mau da fita e alvo do ódio da cidade fictícia de São Petersburgo.

Em "Huckleberry Finn" - o pobre filho do bêbado da cidade - Mark Twain insurge-se contra a escravatura e denuncia o falhanço da reinserção dos afro-americanos na sociedade, no pós Guerra Civil.
(por Diana Garrido, Publicado em 20 de Abril de 2010 - ionline)



domingo, 28 de novembro de 2010

Ética

Ética e Moral - Desidério Murcho

Ética e moral

Uma distinção indistinta
Desidério Murcho

A pretensa distinção entre a ética e a moral é intrinsecamente confusa e não tem qualquer utilidade. A pretensa distinção seria a seguinte: a ética seria uma reflexão filosófica sobre a moral. A moral seria os costumes, os hábitos, os comportamentos dos seres humanos, as regras de comportamento adoptadas pelas comunidades. Antes de vermos por que razão esta distinção resulta de confusão, perguntemo-nos: que ganhamos com ela?
Em primeiro lugar, não ganhamos uma compreensão clara das três áreas da ética: a ética aplicada, a ética normativa e a metaética. A ética aplicada trata de problemas práticos da ética, como o aborto ou a eutanásia, os direitos dos animais, ou a igualdade. A ética normativa trata de estabelecer, com fundamentação filosófica, regras ou códigos de comportamento ético, isto é, teorias éticas de primeira ordem. A metaética é uma reflexão sobre a natureza da própria ética: Será a ética objectiva, ou subjectiva? Será relativa à cultura ou à história, ou não?
Em segundo lugar, não ganhamos qualquer compreensão da natureza da reflexão filosófica sobre a ética. Não ficamos a saber que tipo de problemas constitui o objecto de estudo da ética. Nem ficamos a saber muito bem o que é a moral.
Em conclusão, nada ganhamos com esta pretensa distinção.
Mas, pior, trata-se de uma distinção indistinta, algo que é indefensável e que resulta de uma confusão. O comportamento dos seres humanos é multifacetado; nós fazemos várias coisas e temos vários costumes e nem todas as coisas que fazemos pertencem ao domínio da ética, porque nem todas têm significado ético. É por isso que é impossível determinar à partida que comportamentos seriam os comportamentos morais, dos quais se ocuparia a reflexão ética, e que comportamentos não constituem tal coisa. Fazer a distinção entre ética e moral supõe que podemos determinar, sem qualquer reflexão ou conceitos éticos prévios, quais dos nossos comportamentos pertencem ao domínio da moral e quais terão de ficar de fora. Mas isso é impossível de fazer, pelo que a distinção é confusa e na prática indistinta.
Vejamos um caso concreto: observamos uma comunidade que tem como regra de comportamento descalçar os sapatos quando vai para o jardim. Isso é um comportamento moral sobre o qual valha a pena reflectir eticamente? Como podemos saber? Não podemos. Só podemos determinar se esse comportamento é moral ou não quando já estamos a pensar em termos morais. A ideia de que primeiro há comportamentos morais e que depois vem o filósofo armado de uma palavra mágica, a "ética", é uma fantasia. As pessoas agem e reflectem sobre os seus comportamentos e consideram que determinados comportamentos são amorais, isto é, estão fora do domínio ético, como pregar pregos, e que outros comportamentos são morais, isto é, são comportamentos com relevância moral, como fazer abortos. E essas práticas e reflexões não estão magicamente separadas da reflexão filosófica. A reflexão filosófica é a continuação dessas reflexões.
Evidentemente, tanto podemos usar as palavras "ética" e "moral" como sinónimas, como podemos usá-las como não sinónimas. É irrelevante. O importante é saber do que estamos a falar se as usarmos como sinónimas e do que estamos a falar quando não as usamos como sinónimas. O problema didáctico, que provoca dificuldades a muitos estudantes, é que geralmente os autores que fazem a distinção entre moral e ética não conseguem, estranhamente, explicar bem qual é a diferença — além de dizer coisas vagas como "a ética é mais filosófica".
Se quisermos usar as palavras "moral" e "ética" como não sinónimas, estaremos a usar o termo "moral" unicamente para falar dos costumes e códigos de conduta culturais, religiosos, etc., que as pessoas têm. Assim, para um católico é imoral tomar a pílula ou fazer um aborto, tal como para um muçulmano é imoral uma mulher mostrar a cara em público, para não falar nas pernas. Deste ponto de vista, a "moral" não tem qualquer conteúdo filosófico; é apenas o que as pessoas efectivamente fazem e pensam. A ética, pelo contrário, deste ponto de vista, é a disciplina que analisa esses comportamentos e crenças, para determinar se eles são ou não aceitáveis filosoficamente. Assim, pode dar-se o caso que mostrar a cara em público seja imoral, apesar de não ser contrário à ética; pode até dar-se o caso de ser anti-ético defender que é imoral mostrar a cara em público e proibir as mulheres de o fazer.
O problema desta terminologia é que quem quer que tenha a experiência de escrever sobre assuntos éticos, percebe que ficamos rapidamente sem vocabulário. Como se viu acima, tive de escrever "anti-ético", porque não podia dizer "imoral". O nosso discurso fica assim mais contorcido e menos directo e claro. Quando se considera que "ética" e "moral" são termos sinónimos (e etimologicamente são sinónimos, porque são a tradução latina e grega uma da outra), resolve-se as coisas de maneira muito mais simples. Continuamos a fazer a distinção entre os comportamentos das pessoas e as suas crenças morais, mas não temos de introduzir o artificialismo de dizer que essas crenças morais, enquanto crenças morais, estão correctas, mas enquanto preferências éticas podem estar erradas. Isto só confunde as coisas. É muito mais fácil dizer que quem pensa que mostrar a cara é imoral está pura e simplesmente enganado, e está a confundir o que é um costume religioso ou cultural com o que é defensável. Peter Singer, James Rachels, Thomas Nagel, e tantos outros filósofos centrais, usam os termos "ética" e "moral" como sinónimos. Para falar dos costumes e códigos religiosos, temos precisamente estas expressões muito mais esclarecedoras: "costumes" e "códigos religiosos".

The Bystander Effect

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Valores

A experiência valorativa faz parte do nosso quotidiano; facilmente abandonamos a neutralidade de uma frase como "Beethoven compôs 9 sinfonias" para a apreciação "A 9ª é a mais bela"; ou passamos da indiferença que supõe a constatação de que "Em Lurdes há um santuário" para a declaração "Devemos estar nele com respeito". Beleza e respeito -- estamos no domínio dos valores. O que (não) é um valor? Como podemos reconhecer um valor?
  1. Um valor não é um facto. Um facto é uma realidade constatável ou um acontecimento susceptível de ser atestado por várias pessoas: coisas, pessoas, acontecimentos, instituições... Formulamos um juízo de facto quando descrevemos aquilo que vemos, ouvimos, sabemos: por ex., "Garfield é um gato". Mas, ao afirmar "O meu vizinho é simpático", formulei um juízo de valor.
  2. "Reconhecer um certo aspecto das coisas como um valor consiste em tê-lo em conta na tomada de decisões ou, por outras palavras, em estar inclinado a usá-lo como um elemento a ter em consideração na escolha e na orientação que damos a nós próprios e aos outros" (Simon Blackburn - Dicionário de Filosofia). Os valores dependem das relações que as coisas a que são atribuídos têm com a pessoa que os atribui: o pôr do sol é belo porque me agrada.
  3. Portanto, um valor não é uma qualidade que pareça estar no objecto como a cor está na tela: não se olha a beleza de uma paisagem -- olha-se a paisagem e é a maneira de olhar que revela a beleza (Ruyer). Ou seja: os valores não são qualidades sensíveis das coisas (como a cor, por ex.) -- embora as propriedades valiosas estejam baseadas nas qualidades das coisas. Os valores também não são objectos (relógios, livros...) -- embora atribuamos valor às coisas. Os valores não são ideias (como, por ex., os objectos matemáticos: a recta, o triângulo...).
  4. Os valores são bipolares (contrapõem-se num pólo positivo e num pólo negativo: verdade/falsidade; justiça/injustiça...) e hierarquizáveis (subordinam-se uns aos outros: uns valem mais do que outros. A justiça, por ex., vale mais do que a elegância).

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Liberdade - Escolha - Felicidade

O psicólogo Barry Schwartz fala sobre os conceito de liberdade, escolha e felicidade.
(Atenção: tem legendas em português)

 

domingo, 31 de outubro de 2010

Acção Humana - Jesús Mosterín


Deixando de lado alguns usos puramente técnicos da palavra “acção” (por exemplo, acção como participação no capital de uma empresa), o núcleo significativo da palavra estriba na produção ou causação de um efeito.

A palavra “acção” emprega-se às vezes para falar de animais não humanos (diz-se que a acção das cigarras é benéfica para a agricultura) ou, inclusive, de objectos inanimados (diz-se que a gravitação é uma forma de acção à distância ou que a toda a acção exercida sobre um corpo corresponde uma acção igual de sentido contrário).

Mas sobretudo usamos a palavra “acção” para nos referirmos ao que fazem os humanos. Aqui só nos interessa este tipo de acção, acção humana.

As nossas acções são (algumas das) coisas que fazemos. Na realidade o verbo “fazer” cobre um campo semântico bastante mais amplo que o substantivo “acção”. O latim distingue o agere do facere (aos quais corresponde em português agir e fazer). Ao substantivo latino actio, derivado de agere, corresponde o substantivo “acção”. Assim, até de um ponto de vista etimológico, “acção” só carrega a carga semântica de “agir” e não propriamente de “fazer”.

Tudo quanto realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma acção. Enquanto dormimos realizamos muitas coisas: respiramos, suamos, damos voltas, apertamos a cabeça contra a almofada, sonhamos, talvez ressonemos alto ou falemos em voz alta ou andemos sonâmbulos pela casa. Todas estas coisas as realizamos inconscientemente, enquanto dormimos. Realizamo-las mas não nos damos conta delas, não temos consciência de que as realizamos. A estas coisas que fazemos inconscientemente não lhes vamos chamar acções.

Vamos reservar o termo “acção” para as coisas que realizamos conscientemente, dando-nos conta de que as fazemos. Há, no entanto, coisas que fazemos conscientemente, dando-nos conta delas, mas sem que à sua realização corresponda uma intenção nossa. Damo-nos conta dos nossos “tiques” e de muitos dos nossos actos reflexos, mas realizamo-los involuntariamente, constatamo-los como espectadores, não os efectuamos como agentes. (A palavra “agente” é outra das palavras derivadas do verbo latino agere.) Por algo que sentimos depois de comer damo-nos conta de que estamos a fazer a digestão. Mas fazer a digestão não constitui (normalmente) uma acção. Pelos sorrisos dos que nos observam damo-nos conta de que estamos a ser ridículos. Mas ser ridículo (praticar actos ridículos) não é uma acção, mas uma reacção, algo que nos passa despercebido e que lamentamos (a não ser que o façamos de propósito, como provocação; neste caso já seria uma acção). Também não chamamos acção a esses aspectos da nossa conduta de que nos damos conta, mas que não efectuamos intencionalmente.

No presente estudo limitar-nos-emos às acções humanas conscientes e voluntárias, às que daqui em diante chamaremos acções (sem mais). Uma acção é uma interferência consciente e voluntária de um homem ou de uma mulher (o agente) no normal decurso das coisas, que sem a sua interferência haveriam seguido um caminho distinto do que por causa da acção seguiram. A maior parte dos acontecimentos não têm nada a ver com acções. Mas há alguns que não correspondem ao normal decurso de um sistema, mas à interferência voluntária de um ser humano x (...) que é o agente dessa acção. (...) Pode haver (e é o caso geral) acontecimentos sem acções, mas não pode haver acções sem acontecimentos. E também não pode haver acções sem agentes. Uma acção é uma entidade abstracta formada por agente x e um acontecimento y, de tal modo que x tem a intenção de que ocorra y e mediante a sua interferência consegue que ocorra y.

Jesús Mosterín, Racionalidad y Acción Humana, Madrid, Alianza Universidad, 1987, pp 141-142 e 144-145.

Monty Python - Clínica da Discussão

Como ler um ensaio de Filosofia

Como se lê um ensaio de filosofia

Vais ter dificuldade em compreender alguns dos textos que iremos ler. Isto é em parte devido a esses textos discutirem ideias abstractas em que não estás acostumado a pensar. Eles podem também usar vocabulário técnico que é novo para ti. Algumas vezes não será evidente qual é o argumento geral do texto. A prosa pode ser complicada e podes precisar de separar cada frase do texto. Eis algumas indicações para tornar o processo mais fácil e mais eficaz.

Índice



Lê superficialmente o texto para encontrar a sua conclusão e ter uma ideia da sua estrutura

Quando se tenta ler um texto difícil, uma boa maneira de começar é lendo primeiro superficialmente o texto para identificar a conclusão principal do autor. Tem em especial atenção os parágrafos de abertura e de fecho, uma vez que frequentemente os autores dir-te-ão aí aquilo a favor de que tencionam argumentar. Quando souberes qual é a conclusão principal do autor, tenta reescrevê-la com as tuas próprias palavras. Isto ajudar-te-á a ter a certeza de que compreendes realmente aquilo que o autor pretende demonstrar.
Quando estiveres a ler superficialmente o texto, tenta também ter uma compreensão geral do que trata cada parte da discussão. Qual é a estrutura do texto? Às vezes os autores dizem no início do texto como será a sua argumentação. Isto torna o teu trabalho mais fácil.
Os textos que lemos nem sempre têm uma estrutura fácil de compreender. Nem sempre terão a forma:
Esta é a conclusão que quero que aceites. Aqui está o argumento para essa conclusão...
Os filósofos frequentemente fornecem argumentos auxiliares, argumentos para premissas importantes a que apelam para suportar a conclusão principal. Por exemplo, a discussão do autor pode ter a forma:
A conclusão que quero que aceites é A. O meu argumento para essa conclusão é o seguinte: B e C são verdadeiros, e se B e C são verdadeiros, então A tem de ser também verdadeiro. É geralmente aceite que B é verdadeiro. Contudo, é controverso se C é verdadeiro. Penso que deves aceitar C pelas razões seguintes...
Aqui o argumento principal do autor é para suportar a conclusão A. Ao defender A ele avança um argumento auxiliar para suportar C. Tenta identificar estes argumentos auxiliares e as alegações que pretendem suportar, evitando confundir um destes argumentos auxiliares com o argumento principal do autor.
Os textos podem ser igualmente complexos de outras formas. Nem tudo o que o autor diz é uma conclusão positiva ou uma premissa para suportar a sua conclusão. Às vezes ele suportará o seu ponto de vista com uma experiência mental. Outras argumentará a favor de uma distinção em que o seu ponto de vista se apoia. Outras defenderá que o ponto de vista ou os argumentos de outro filósofo devem ser rejeitados. Outras ainda defenderá um ponto de vista contra as objecções de outra pessoa.
Está atento a palavras como estas enquanto lês:
  • porque, desde, dado este argumento
  • assim, portanto, por isso, segue-se que, consequentemente
  • no entanto, contudo, mas
  • em primeiro lugar, por outro lado
Estes são indicadores que te ajudam a perceber a estrutura da discussão. Por exemplo, um artigo filosófico pode ter este aspecto:
O filósofo X avançou o argumento seguinte contra o dualismo...
O dualista tem duas respostas ao argumento de X. Primeiro...
Contudo, esta resposta tem problemas, porque...
Uma resposta melhor é dizer...
X pode ser tentado a contrapor o seguinte...
Contudo...
e assim por diante. As palavras "primeiro" e "contudo" e "uma resposta melhor" tornam fácil ver para onde vai a discussão. Vais querer pôr também indicadores como estes nos teus próprios escritos filosóficos.
Eis outro exemplo:
O céptico diz não podemos dizer se estamos a ver as coisas como elas realmente são, ou se somos cérebros numa cuba alimentados com experiências falsas, como os habitantes de The Matrix.
Y fez a seguinte objecção ao céptico... Por isso, concluo, não temos nenhuma razão para pensar que a nossa situação é tão má quanto o céptico diz.
É tentador responder desta maneira ao céptico, mas não creio que funcione, pela seguinte razão...
Y pode responder a este problema de uma de duas maneiras. A primeira é... Contudo, esta resposta falha porque...
A segunda maneira é... Contudo, esta resposta também falha porque...
Pelo que no fim de contas penso que a objecção de Y ao céptico não pode ser mantida. Claro que, não sou um céptico. Concordo com Y que a conclusão do céptico é falsa. Mas penso que temos que reflectir mais no assunto para ver qual é realmente o defeito do raciocínio do céptico.
Neste texto, o autor passa a maior parte do tempo a defender o céptico contra as objecções de Y, e a examinar as respostas que Y pode dar. A principal conclusão do autor é que as objecções de Y ao céptico não funcionam. (Nota: A conclusão principal não é que o cepticismo é verdadeiro.)
Volta atrás e lê o texto cuidadosamente

Quando tiveres percebido qual é a conclusão principal do argumento e qual é a estrutura global do texto, volta atrás e lê o artigo cuidadosamente. Toma atenção à forma como as várias partes se encaixam umas nas outras.
  • Mais importante, percebe quais são os argumento(s) centrais do autor. Que razões é que ele apresenta em suporte das suas conclusões? Em que parte do texto é que apresenta estas razões?
Tem também em atenção o seguinte:
  • Aponta onde é que o autor diz explicitamente o que entende por um determinado termo.
  • Aponta que distinções o autor introduz ou defende.
  • Tem em conta em particular as assunções não justificadas em que pensas que o autor se apoia.
  • Considera várias interpretações do que ele diz. Há alguma ambiguidade importante de que a sua argumentação não dê conta?
Tudo isto te ajudará a compreender melhor o texto e será crucial quando tentares avaliar o argumento do autor e decidir se deves aceitar ou não a sua conclusão.
Podes nas tuas notas esboçar as "peças" argumentativas mais importantes. Desenha esquemas de modo a representar a forma como achas que estas peças se encaixam. Se não o podes fazer, então precisas de voltar a ler o texto de modo a compreender melhor o que o autor defende.
Deves estar preparado para ter de ler um texto filosófico mais do que uma vez. Eu faço filosofia há mais de dez anos e ainda tenho que ler os artigos várias vezes antes que consiga compreendê-los completamente. Digerir intelectualmente um texto de filosofia demora tempo e exige esforço e concentração. É mais que certo que não vais compreender tudo num texto a primeira vez que o lês e podem existir partes do texto que não compreenderás mesmo depois de o ler várias vezes. Deves pôr questões sobre essas partes do texto (nas aulas ou depois das aulas, como queiras). Podes dizer:
O que é que se passa na página 13? Descartes diz X, mas não percebo como isto se ajusta com a sua anterior alegação Z. X é suposto seguir-se de Z? Ou ele está a tentar aqui apresentar um argumento para Z? Se é isso, porque é que ele pensa que X é uma razão a favor de Z?
Avalia os argumentos do autor

Como é óbvio, só estarás em condições de avaliar os argumentos do autor quando tiveres feito o trabalho necessário para perceber o que o autor está realmente a dizer e como os seus argumentos funcionam.
Quando o tiveres feito, podes começar a fazer perguntas como estas: Concordas com o autor? Se não, o que é que pensas que está errado no seu raciocínio? Apela ele a alguma premissa que penses ser falsa? (Porque pensas que é falsa?) Há alguma assunção que o autor não explicite, mas que pensas ser falsa? O seu argumento é confuso ou mal dirigido?
Sentirás com frequência que os debates que examinamos são muito confusos e que não sabes em que argumentos acreditar. Não há forma de escapar a isto. Sinto-me assim constantemente. Tudo o que posso dizer é que se trabalhares muito, serás capaz de te orientares na confusão. Começas a perceber como é que os diferentes pontos de vista se relacionam mutuamente e quais são os seus prós e contras. Podes até chegar à conclusão de que as coisas são mais confusas do que pensavas, que são frustrantes e que tens de voltar aos esquemas. Isto pode repetir-se várias vezes e podes nunca chegar a uma conclusão definitiva. Mas cada vez que tentas entender o debate, descobres que percebes as coisas um pouco melhor. É assim que progredimos em filosofia. Esse é o único caminho.
Às vezes uma questão filosófica conduz a três outras, que por sua vez conduzem a outras... e não podes explorar essas ligações imediatamente. De modo que tens que aprender a passar sem respostas definitivas. Podes não ser capaz de chegar a uma conclusão segura acerca de se deves aceitar um argumento filosófico, por que isso depende de outras questões P, Q, e R, que ainda não abordaste. Isto é normal. Os teus próprios professores de filosofia sentem-se frequentemente desse modo a propósito de muitos argumentos que leram.
Outras vezes, podes estar seguro de que um argumento é defeituoso, mas não tens tempo nem meios para compreender, ou explicar e sustentar tudo o que pensas estar errado no argumento. Nesses casos, podes provisoriamente aceitar uma das premissas do argumento, e avançar para outras que penses serem mais importantes ou mais fáceis de criticar. (É por este motivo que frequentemente ouves os filósofos dizerem que "Mesmo se assumirmos por hipótese tal e tal, continuo a pensar que o argumento de X falha, porque...")

Tradução de Álvaro Nunes
Agradeço a James Pryor ter gentilmente permitido a tradução e publicação do seu texto.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lógica e Argumentação - Desidério Murcho

Lógica e argumentação

Desidério Murcho

"Uma das razões mais importantes para estudar filosofia é aprender a formar e defender pontos de vista próprios."
Mark Sainsbury

A argumentação é um instrumento sem o qual não podemos compreender melhor o mundo nem intervir nele de modo a alcançar os nossos objectivos; não podemos sequer determinar com rigor quais serão os melhores objectivos a ter em mente. Os seres humanos estão sós perante o universo; têm de resolver os seus problemas, enfrentar dificuldades, traçar planos de acção, fazer escolhas. Para fazer todas estas coisas precisamos de argumentos. Será que a Terra está imóvel no centro do universo? Que argumentos há a favor dessa ideia? E que argumentos há contra ela? Será que Bin-Laden é responsável pelo atentado de 11 de Setembro? Que argumentos há a favor dessa ideia? E que argumentos há contra? Será que foi o réu que incendiou propositadamente a mata? Será que o aborto é permissível? Será que Cristo era um deus? Será que criaremos mais bem-estar se o Estado for o dono da maior parte da economia? Será possível curar o cancro? E a Sida? O que é a consciência? Será que alguma vez houve vida em Marte? Queremos respostas a todas estas perguntas, e a muitas mais. Mas as respostas não nascem das árvores nem dos livros estrangeiros; temos de ser nós a procurar descobri-las. Para descobri-las temos de usar argumentos. E quando argumentamos podemos enganar-nos; podemos argumentar bem ou mal. É por isso que a lógica é importante. A lógica permite-nos fazer o seguinte:
  1. Distinguir os argumentos correctos dos incorrectos;
  2. Compreender por que razão uns são correctos e outros não; e
  3. Aprender a argumentar correctamente.
Os seres humanos erram. E não erram apenas no que respeita à informação de que dispõem. Erram também ao pensar sobre a informação de que dispõem, ao retirar consequências dessa informação, ao usar essa informação na argumentação. Muitos argumentos incorrectos não são enganadores: são obviamente incorrectos. Mas alguns argumentos incorrectos parecem correctos. Por exemplo, muitas pessoas sem formação lógica aceitariam o seguinte argumento:
Tem de haver uma causa para todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa.
Contudo, este argumento é incorrecto. A lógica ajuda-nos a compreender por que razão este argumento é incorrecto, apesar de parecer correcto. Chama-se "válido" a um argumento correcto e "inválido" a um argumento incorrecto. Do ponto de vista estritamente lógico não há qualquer distinção entre argumentos inválidos que são enganadores porque parecem válidos, e argumentos inválidos que não são enganadores porque não parecem válidos. Mas esta distinção é importante, e por isso alguns autores reservam o termo "falácia" para os argumentos inválidos que parecem válidos. Como é evidente, são as falácias que são particularmente perigosas. Os argumentos cuja invalidade é evidente não são enganadores e se todos os argumentos inválidos fossem assim, não seria necessário estudar lógica para saber evitar erros de argumentação.

Há muitos aspectos da argumentação que não são estudados pela lógica; por exemplo, alguns aspectos psicológicos. Algumas pessoas aceitam argumentos inválidos pensando que são válidos; outras, recusam argumentos válidos pensando que são inválidos. Há vários tipos de factores que explicam estas atitudes: factores psicológicos, sociológicos, históricos, patológicos, etc. A lógica não estuda estes aspectos da argumentação, que são estudados pela psicologia, sociologia, história e psiquiatria.

A lógica também não estuda o que as pessoas aceitam como argumentação válida, tal como a história não estuda o que as pessoas pensam sobre o passado. A história estuda o próprio passado e não o que as pessoas pensam dele, se bem que tenha em conta o que as pessoas pensam do passado — nomeadamente para determinar se o que as pessoas pensam do passado é ou não verdade. Do mesmo modo, a lógica não estuda o que as pessoas aceitam como argumentação válida, mas a própria argumentação válida, se bem que tenha em conta o que as pessoas aceitam como argumentação válida — nomeadamente para determinar se o que as pessoas aceitam como argumentação válida é ou não efectivamente argumentação válida.
"Argumento", "inferência", e "raciocínio" são termos praticamente equivalentes. Fazer uma inferência é apresentar um argumento, e raciocinar é retirar conclusões a partir de premissas. Pensar é em grande parte raciocinar. Um argumento é um conjunto de afirmações de tal forma organizadas que se pretende que uma delas, a que se chama "conclusão", seja apoiada pelas outras, a que se chamam "premissas". O que se pretende num argumento válido é que as suas premissas estejam de tal forma organizadas que "arrastem" consigo a conclusão. Uma boa analogia é pensar nas premissas e na conclusão como elos de uma corrente; se o argumento for válido, "puxamos" pelas premissas e a conclusão vem "agarrada" a elas; se for inválido, "puxamos" pelas premissas mas a conclusão não vem "agarrada" a elas.
Eis alguns exemplos de argumentos:
  1. Não podemos permitir o aborto porque é o assassínio de um inocente.
  2. Dado que os artistas podem fazer o que muito bem entenderem, é impossível definir a arte.
  3. Considerando que sem Deus tudo é permitido, é necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida.
  4. Se Sócrates fosse um deus, seria imortal. Mas dado que Sócrates não era imortal, não era um deus.
Nem sempre é fácil determinar qual é a conclusão e quais são as premissas de um dado argumento; mas esse é o primeiro passo para que o argumento possa ser discutido. No caso do argumento 1 a conclusão é "Não podemos permitir o aborto" e a premissa é "O aborto é o assassínio de um inocente". No caso do argumento 2 a conclusão é "É impossível definir a arte" e a premissa é "Os artistas podem fazer o que muito bem entenderem". O argumento 3 é mais prolixo: a conclusão é "É necessária a existência de Deus para fundamentar a moral e dar sentido à vida" e a premissa é "Sem Deus tudo é permitido".

Para tornar a discussão de argumentos mais fácil podemos reformulá-los, separando claramente cada uma das premissas da conclusão. Chama-se "representação canónica" a esta maneira de representar os argumentos. O argumento 4 pode ser canonicamente representado como se segue:
Se Sócrates fosse um deus, seria imortal.
Sócrates não era imortal.
Logo, Sócrates não era um deus.
É evidente que esta forma de apresentar argumentos é artificiosa. Mas é o primeiro passo para que se possa discutir argumentos, pois só assim se torna claro quais são as premissas e qual é a conclusão. Esta forma de representar argumentos é já fruto do trabalho de análise de argumentos.

Reformular argumentos, apresentando-os na sua forma canónica é um exercício imprescindível no estudo da lógica. Claro que os argumentos dados para reformular não poderão ser demasiado complexos, pois só alguém já familiarizado com a lógica ou um especialista poderá reformular argumentos cuja estrutura seja demasiado complexa. Mas não poderão ser tão simples que surjam como artificialismos sem qualquer relação com a argumentação real que se encontra nos ensaios dos filósofos. O objectivo do estudo da lógica é desenvolver as seguintes capacidades, face a um ensaio filosófico ou outro:
  1. Identificar a conclusão ou conclusão principal;
  2. Identificar as premissas, incluindo eventuais premissas implícitas;
  3. Distinguir diferentes argumentos, explícitos ou aludidos, que o ensaio apresenta.
Estas capacidades permitem discutir as ideias dos filósofos e adoptar uma posição crítica. Sem ela, resta a paráfrase e o monólogo sem rumo, a que habitualmente se chama "comentário de texto" e "problematização".

Nos parágrafos precedentes definiu-se e caracterizou-se a lógica, definindo a noção de argumento, apresentando vários exemplos, e dando uma ideia intuitiva de argumento válido e inválido. É desta forma que tem de se proceder. Definir a lógica através da raiz etimológica da palavra "lógica" nada esclarece. E dar exemplos de quebra-cabeças, que muitas vezes não envolvem quaisquer argumentos, mas apenas truques e trocadilhos, é enganador. A lógica deve ser apresentada como o que realmente é: um estudo de alguns aspectos importantes da argumentação, que nos permite distinguir os argumentos válidos dos inválidos. A lógica não é uma espécie de "jogo simbólico" nem de "quebra-cabeças".

Finalmente a lógica não é o estudo das condições de "coerência" do pensamento. A lógica estuda a validade e não a coerência da argumentação. Um argumento pode ser perfeitamente coerente e ser inválido, como no exemplo seguinte:
Se a vida não é sagrada, o aborto é permissível.
Mas a vida é sagrada.
Logo, o aborto não é permissível.
Extraído de O Lugar da Lógica na Filosofia, de Desidério Murcho (Plátano, 2003)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A Mancha Humana de Philip Roth

Durante o turbulento Verão do escândalo Lewinsky, Coleman Silk, decano universitário, vê como a sua reputação e a sua carreira são arruinadas por proferir uma expressão pouco afortunada num momento inoportuno. Como numa nova caça às bruxas, a febre do politicamente correcto desata consequências devastadoras. Mas a verdade sobre Coleman não é a escandalosa relação que mantém com a misteriosa Faunia, que tem menos de metade da sua idade, nem o seu alegado racismo e misoginia, mas um segredo que não conhecem nem a sua mulher, nem os seus quatro filhos, nem os seus colegas, nem os seus amigos. Coleman ver-se-á forçado a mostrar a sua autêntica identidade antes que seja tarde demais...

Philip Roth nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1933. É um dos autores contemporâneos mais galardoados: dois dos seus romances ganharam o National Book Award; outros dois foram finalistas, dois ganharam o prémio do National Book Critics Circle, e outros dois foram finalistas. Obteve igualmente o Pulitzer e dois prémios PEN Club.
A Mancha Humana (2001) é uma das suas obras-mestras. Outros títulos destacados são Complexo de Portnoy, Património, Teatro de Sabbath, O Animal Moribundo, Pastoral Americana, Casei com um Comunista, A Conspiração contra a América e Todo-o-mundo.
Críticas de imprensa:
 
"A Mancha Humana é o último livro de uma trilogia que constitui um fresco absolutamente notável sobre a sociedade americana do pós-guerra. É, quanto a mim, o mais poderoso dos três livros (...) Aos 70 anos, Roth continua a exibir uma força e uma voracidade a escrever perfeitamente impressionantes."
Francisco Allen Gomes, In Mil Folhas (Público), 02 de Janeiro de 2005


"Roth escreveu o seu melhor romance depois dos 70 anos (...) O que Roth faz, melhor do que todos os outros depois de Saul Bellow, é tratar a fraqueza humana com o olhar compassivo e desapaixonado de quem atravessou aquele corredor silencioso onde se cruzam pela útlima vez e sexo e a morte (...) Um sopro de inteligência num mundo obtuso."
Clara Ferreira Alves, In Mil Folhas (Público), 02 de Janeiro de 2005

Last Dray Dream de Chris Milk

domingo, 17 de outubro de 2010

Manifesto Pró-Filosofia

A filosofia é esta reflexão crítica e interrogativa que permite a um homem e a uma civilização ascender à consciência de si, distinguir entre os verdadeiros e os falsos valores, pôr-se em questão para se renovar e ultrapassar. Um tempo como o nosso, caracterizado pela expansão e a crise dos saberes e dos poderes e onde os problemas se vão radicalizando, tem uma premente necessidade, para se compreender a si próprio, de um pensamento filosófico livre, vivo, diferenciado. Se a filosofia se apagar, se a voz dos filósofos se extinguir, o espírito tornar-se-á cada vez mais vulnerável às manipulações dos mercadores de ídolos e dos fabricantes de opinião.”
Manifesto pró-filosofia, publicado no Le Monde de Julho de 1975, ,  in AAVV, Rumos da Filosofia, Ed. Rumo, pag.123

The 13th Floor de Josef Rusnak

The Man Who Fell to Earth de Nicolas Roeg

O que é isto da Filosofia? IV

“O Valor da filosofia encontra-se, de facto, na sua própria incerteza. O homem sem rudimentos de de filosofia passa pela vida encarcerado nos preconceitos derivados do senso-comum, das crenças habituais do seu tempo ou da sua nação, e de convicções que se desenvolveram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento da sua razão ponderada. Para tal homem, o mundo tem tendência a tornar-se definido, finito, óbvio; os objectos comuns não levantam questões, e as possibilidades estranhas são desdenhosamente rejeitadas.
Mal começamos a filosofar, pelo contrário, descobrimos[...] que até as coisas mais corriqueiras levantam problemas a que só podemos dar respostas muito incompletas. A filosofia, apesar de ser incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, tem a capacidade de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do hábito. Assim, apesar de diminuir a nossa sensação de certeza quanto ao que as coisas são, a filosofia aumenta em muito o nosso conhecimento do que podem ser; elimina o dogmatismo algo arrogante daqueles que nunca viajaram no território da dúvida libertadora, e mantém vivo o nosso sentido de deslumbramento ao mostrar coisas familiares sob um aspecto estranho.”
Bertrand Russel, Os Problemas da Filosofia, in AAVV, A Arte de Pensar, pag.24  

O que é isto da Filosofia? III

Viver sem filosofar equivale, verdadeiramente, a ter os olhos fechados, sem nunca procurar abri-los, e o prazer de ver todas as coisas que a nossa vista alcança não se compara à satisfação que confere o conhecimento do que se encontra pela filosofia; e enfim que este estudo é mais necessário para regrar os costumes, e conduzir-nos na vida, do que o uso dos olhos para nos guiar os passos. Os brutos animais que apenas possuem o corpo para conservar, ocupam-se, continuamente, com procurar alimentá-lo; mas os homens, cuja parte principal é o espírito, deveriam primacialmente empregar o tempo na pesquisa da sabedoria, o seu verdadeiro alimento.”
R. Descartes, Princípios da Filosofia, Guimarães editores, pag.31 

O que é isto da Filosofia? II

Pensar é dizer não. Notai que o sinal do sim é próprio do homem que se deixa a adormecer; ao contrário, o homem desperto agita a cabeça e diz não. Não a quê? Ao mundo? Ao tirano? Ao pregador? Isto não é senão aparência. Em todo o caso, é a si próprio que o pensamento diz não.  (...) O que faz com que o mundo me engane com as suas perspectivas, com os seus nevoeiros, com os seus choques desviadores é que eu consinto, é que eu não procuro outra coisa. E o que faz com que o tirano seja meu mestre é o facto de eu o respeitar em vez de o examinar. (...) É por acreditarem que os homens são escravos. Reflectir é negar o que se crê.
Quem acredita nem sequer sabe aquilo que crê. Quem se satisfaz com o seu pensamento não pensa em mais nada. (...) Que é que eu vejo quando abro os olhos? (...) É ao interrogar as coisas que eu as vejo. (...) Notai que à primeira apresentação tudo surge como verdadeiro.”
Alain, Libres propos, in AAVV Um outro Olhar sobre o Mundo, Ed. ASA, pag.118  

O que é isto da Filosofia?

“Eu já disse que a capacidade de nos surpreendermos é a única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filósofos? Se não o disse, digo-o agora: A CAPACIDADE DE NOS SURPREENDERMOS É A ÚNICA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA NOS TORNARMOS BONS FILÓSOFOS.
Todas as crianças pequenas possuem essa capacidade, isso é óbvio. Com poucos meses de vida, começam a aperceber-se de uma realidade completamente nova. Mas quando crescem, esta capacidade parece diminuir. Qual será o motivo? (...).
Será a minha tarefa impedir que tu (...) te tornes uma daquelas pessoas para quem o mundo é evidente. (...)
Aparentemente, perdemos durante a nossa infância a capacidade de nos surpreendermos com o mundo. Mas com isso, perdemos algo essencial – algo que os filósofos querem reavivar. Porque em nós algo nos diz que a vida é um grande mistério. Já tivemos essa sensação muito antes de termos aprendido a pensar nisso.
Vou ser mais preciso: apesar de todas as questões filosóficas dizerem respeito a todos os homens, nem todos os homens se tornam filósofos. Por diversos motivos, a maior parte está presa de tal forma ao quotidiano que o espanto perante a vida é muito escasso. (...).
Para as crianças, o mundo – e tudo o que existe nele – é uma coisa nova, uma coisa que provoca estupefacção. Os adultos não o vêem assim. A maior parte dos adultos vê o mundo como qualquer coisa completamente normal.
Os filósofos constituem uma excepção notável. Um filósofo nunca se conseguiu habituar completamente ao mundo. Para um filósofo ou para uma filósofa o mundo é ainda imcompreensível, inclusivamente enigmático e misterioso. Os filósofos e as crianças pequenas possuem uma importante qualidade em comum. Podes dizer que um filósofo permace durante toda a sua vida tão capaz de se surpreender como uma criança pequena.
E agora tens que te decidir, (...): és uma criança que ainda não se habituou ao mundo? Ou és um(a) filósofo(a) que pode jurar que isso nunca lhe acontecerá?
Se abanas a cabeça e não te sentes nem como criança nem como filósofo(a), é porque te acostumaste tão bem ao mundo que este já não te surpreende. Nesse caso o perigo está eminente. Por isso te ofereço este curso de filosofia, para prevenir. Não quero que tu pertenças à categoria dos apáticos e dos indiferentes. Quero que vivas a tua vida de modo consciente.”
Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, Ed. Presença, pags.21-23

Ficção Científica na Moagem

O Cine Clube Gardunha organiza, de 27 a 31 de Outubro, um ciclo de cinema de Ficção Científica a propósito dos 90 anos de Ray Bradbury.

Bilhete Normal: 4 euros
Bilhete estudante e sócio: 2 euros com direito a uma entrada gratuita (2 euros = 2 entradas)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Argumentação - Quino

Socrates - Quino

Argumentação - Quino

Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, é um humorista gráfico e criador de B.D. argentino. É o criador da Mafaldinha

Os carneiros

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O valor dos argumentos - Anthony Weston


Argumentação
Anthony Weston

Algumas pessoas pensam que argumentar é apenas expor os seus preconceitos de uma forma nova. É por isso que muitas pessoas pensam também que os argumentos são desagradáveis e inúteis. Argumentar pode confundir se com discutir. Neste sentido, dizemos por vezes que duas pessoas discutem, como numa espécie de luta verbal. Acontece muito. Mas não é isso o que os argumentos realmente são.Neste livro «apresentar um argumento» quer dizer oferecer um conjunto de razões a favor de uma conclusão ou oferecer dados favoráveis para uma conclusão. Neste livro, um argumento não é apenas a afirmação de certos pontos de vista, e não é apenas uma disputa. Os argumentos são tentativas de apoiar certos pontos de vista com razões.

Neste sentido, os argumentos não são inúteis; na verdade, são essenciais. Os argumentos são essenciais, em primeiro lugar, porque são uma forma de tentar descobrir quais os melhores pontos de vista. Nem todos os pontos de vista são iguais. Algumas conclusões podem ser apoiadas com boas razões; outras, com razões menos boas. Mas muitas vezes não sabemos quais são as melhores conclusões. Precisamos de apresentar argumentos para apoiar diferentes conclusões, e depois avaliar tais argumentos para ver se são realmente bons. Neste sentido, um argumento é uma forma de investigação. Alguns filósofos e activistas argumentaram, por exemplo, que criar animais só para fornecer carne causa um sofrimento imenso aos animais e que, portanto, isso é injustificado e imoral. Será que eles têm razão? Não se pode decidir consultando os preconceitos que se têm. Estão envolvidas muitas questões. Temos obrigações morais para com outras espécies, por exemplo, ou é só o sofrimento humano que é realmente mau? Podem os seres humanos viver realmente bem sem carne? Alguns vegetarianos viveram até idades muito avançadas. Será que este facto mostra que as dietas vegetarianas são mais saudáveis? Ou é esse facto irrelevante, considerando que alguns não vegetarianos também viveram até idades muito avançadas? (É melhor perguntar se uma percentagem mais elevada de vegetarianos vivem até idades avançadas.) Talvez as pessoas mais saudáveis tenham tendência para se tornarem vegetarianas, ao contrário das outras? Todas estas questões têm de ser consideradas cuidadosamente, e as respostas não são, à partida, óbvias. Os argumentos também são essenciais por outra razão. Uma vez chegados a uma conclusão bem apoiada por razões, os argumentos são a maneira pela qual a explicamos e defendemos. Um bom argumento não se limita a repetir as conclusões. Em vez disso, oferece razões e dados para que as outras pessoas possam formar a sua própria opinião. Se o leitor ficar convencido que devemos realmente mudar a forma como criamos e usamos os animais, por exemplo, terá de usar argumentos para explicar como chegou a essa conclusão: é assim que convencerá as outras pessoas. Ofereça as razões e os dados que o convenceram a si. Ter opiniões fortes não é um erro. O erro é não ter mais nada.
Anthony Weston, A arte de argumentar, tr. Desidério Murcho, Gradiva, 1996, pp. 13-15

Ao Aprendiz de Filósofo


AO APRENDIZ DE FILÓSOFO
António Sérgio

“[…] Ao aprendiz de filósofo (ao jovem aprendiz, pretendo eu dizer, e na minha qualidade de aprendiz mais velho), rogo que se não apresse a adoptar soluções, que não leia obras de uma só escola ou tendência, que procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como primário escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de os compreender a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do que se chame «senso comum (a filosofia é, em não pequena parte, a luta do bom senso contra o «senso comum»).
[…] Ora, se o fundamental da filosofia é de facto a crítica, e se, pois, a filosofia deve ser estudada não pelo mérito das respostas precisas sobre um certo número de questões primárias, senão que pelo valor que em si mesma assume, para a cultura do espírito, a mera discussão de tais problemas, segue-se que é ideia inteiramente absurda a de se dar a alguém uma iniciação filosófica pela pura transmissão das respostas precisas com que pretendeu resolver esses tais problemas um determinado autor ou uma certa escola. Deverá pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencialmente crítico e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às discussões ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como um indivíduo que nos lecciona a ginástica, procedendo ele próprio como um bom ginasta e obrigando-nos a nós próprios a fazer ginástica; é quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo da faina de elucidação dos problemas […] Repito: seja a filosofia para o aprendiz de filósofo não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma actividade de elucidação dos problemas. É esta actividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. Como tive ensejo de notar algures, pode ser muito útil para a vida prática o simples conhecimento do enunciado de uns tantos teoremas de matemática; porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.
Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito, de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro, o de nos mantermos aí eternamente passivos, de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação, conclua que ele próprio é que a não percebe, e que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandroso, mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e que se lhe impõe portanto uma atenção maior [...] e o melhor processo nessa primeira fase, é talvez o de refazermos por iniciativa nossa, com exemplos familiares da nossa experiência, a doutrina exposta pelo autor que estudamos, até que a tenhamos como coisa nossa, porque feita de matéria verdadeiramente nossa, e reconstruída pelo nosso espírito.”

Prefácio de António Sérgio a Os problemas da Filosofia de Bertrand Russell, Coimbra, 1959

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

The Truman Show de Peter Weir

Dark City de Alex Proyas

O Que é a Filosofia? - Thomas Nagel

Que Quer Dizer Tudo Isto?, de Thomas Nagel
O que é a filosofia?
Thomas Nagel
 As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.
[...] Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas.
A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta em experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da matemática não tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.
A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?» Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»
Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número, conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.
NAGEL, Thomas (1997). Que quer dizer tudo isto? Lisboa: Gradiva, páginas 7 - 9
 
Tradução de Teresa Marques
Revisão Científica de Desidério Murcho
Gradiva, Novembro 1995, 92 pp.
Apresentação
Uma introdução elementar a 9 problemas filosóficos típicos, escrita num tom informal, claro e simples, mas rigoroso e preciso. O autor introduz tópicos de epistemologia e metafísica, filosofia da linguagem e da mente, ética e filosofia política, terminando com uma introdução a dois tópicos metafísicos gerais (o sentido da vida e o problema da morte). O Cap. 1 oferece ainda uma caracterização preliminar do género de problemas que são estudados pela filosofia.
Nagel defende que não é possível compreender os textos dos grandes filósofos sem que tenhamos percebido os problemas com que se debatem. Por isso, introduz directamente o leitor aos problemas da filosofia, nunca citando uma só vez um nome de um filósofo.
O título da obra refere-se à pergunta repetidamente formulada, sempre que se procura caracterizar um problema: que quer isso dizer? O leitor fica assim ciente da importância, central na filosofia, de procurar a formulação correcta dos problemas filosóficos, verificando a cada passo se estamos perante um problema genuíno ou não. As tentativas de solução dos problemas apresentados são cuidadosamente defendidas com argumentos claros. Geralmente, essas tentativas fracassam, pois o autor deseja mostrar por que razão as soluções mais óbvias falham.
Todos os problemas abordados em Que Quer Dizer Tudo Isto? fazem parte dos programas do ensino secundário, pelo que esta obra constitui um instrumento crucial neste domínio. Mas a acuidade com que os problemas são colocados, o cuidado posto na clareza da argumentação e a importância central dos temas tratados tornam esta obra numa leitura obrigatória para os alunos do ensino superior e para o público interessado em conhecer um pouco mais os problemas da filosofia.
Este pequeno livro é talvez a melhor primeira introdução à filosofia que se pode ler. Esta obra não nos ensina o que pensou Platão, nem Aristóteles, nem Descartes, nem Kant; mas ensina-nos o mais importante: ensina-nos a pensar sobre os problemas filosóficos. E sem essa competência específica, é inútil aprender o que disseram os grandes filósofos do passado.
Sobre o autor
Thomas Nagel é professor de Filosofia e Direito na Universidade de Nova Iorque e um dos mais reputados filósofos actuais. É membro da Academia Americana de Artes e Ciências e da Academia Britânica. As suas obras já foram traduzidas em dezoito línguas. É autor de algumas das mais importantes obras da filosofia contemporânea, como The Possibility of Altruism (1970), Mortal Questions (1979), The View From Nowhere (1986) e Equality and Partiality (1991). A Última Palavra (1997), obra publicada pela Filosofia Aberta, foi distinguida com o prémio «Outstanding Academic Book of 1997» da Choice. Publicou ainda Other Minds: Critical Essays, 1969-1994 (1995), que recolhe as mais importantes recensões do autor, e uma obra de introdução à filosofia para adolescentes, Que Quer Dizer Tudo Isto?, publicada na Filosofia Aberta. O influente jornal cultural britânico Times Literary Supplement chamou-lhe «o filósofo mais interessante dos nossos dias».
Índice
1.Introdução
2.Como sabemos seja o que for?
3.Outras mentes
4.O problema da mente-corpo
5.O significado das palavras
6.livre-arbítrio
7.Certo e errado
8.Justiça
9.Morte
10.O sentido da vida
Desidério Murcho (http://criticanarede.com/fa_1.html)