QUANDO NADA MAIS HOUVER PARA COMER,
OS POBRES COMERÃO OS RICOS
Pedro disse que o sacrifício é inevitável e que todos devem contribuir. Pedro faz hoje o que prometera há quatro meses não fazer. Pedro não se lembra do que disse há quatro meses. Pedro já não é Pedro. Manuel é despedido e regressa ao olhar triste dos pais, tem 46 anos e ajuda a cuidar dos animais. Isabel tem dois empregos para pagar a renda de casa, ainda não conseguiu ajudar o filho nos trabalhos da escola. Rogério despede o motorista e a empregada já só vai três dias a casa. Paulo despede 125 trabalhadores, um a um, cara a cara, porque merecem. Tomás chega a casa e pega no dinheiro que juntou durante dois anos para comprar a playstation ao filho de 7. Lucas vê as lágrimas que o pai esconde quando pega no mealheiro cor de laranja, diz-lhe que está tudo bem, que não importa. Luís despede 40 por telemóvel. É a secretária, Ester, que envia o sms, “puta que o pariu”, pensa enquanto o faz. Rosa emigra para a Suíça, não lhe ensinaram a fazer limpezas no curso de Direito. Margarida diz que o importante é haver saúde. Nunca deixa de rir, só lhe dá para rir. O tempo voltou atrás. Afonso diz que um dia perde a cabeça e parte tudo, diz no café, no trabalho e para quem o quer ouvir. Mas não parte nada, pelo menos agora, com um filho pequeno. Diana veste a roupa que as mães das amigas lhe deram. Sente vergonha ao entrar na escola “melhor do que sentir frio”, diz-lhe a mãe. Depois de deitar o filho, Sofia senta-se na cozinha e chora sozinha, como todos os dias, baixinho. A escola do Sérgio abre ao fim-de-semana para uma refeição decente. José finge que estuda Filosofia em Paris de olhos postos num qualquer conselho de administração. Dora abandona o ballet e os seus 5 anos não dão para compreender isso do dinheiro não chegar, todas as princesas têm de saber dançar. Joaquim perde dinheiro todos os dias porque não consegue despedir os dois funcionários do restaurante, “são como filhos e têm garotos pequenos”, diz para a mulher, “cá nos havemos de arranjar”. Jaime continua a pertencer ao conselho de administração de seis empresas. Marta, sua mulher, pensou uma vez na quantidade de trabalho que ele teria, a empregada do spa, Isabel, há 12 horas em pé, entrou e ela esqueceu-se. Joana foi apanhada no hiper a roubar Cerelac para o filho de 2 anos. Sousa diz em directo à hora do jantar que compreende a angústia da classe média, mas que não há alternativa e, sem pausas, passa para os livros que lhe ofereceram. Entre dentes, Jerónimo diz ao balcão da tasca de sempre, “sabes lá tu o que é a vida”. Adelino faz o último ano à frente da intersindical, tempo para mais uma manifestação, hoje como há 20 anos. Rafael, 17 acabados de fazer, vai à primeira com os amigos, “não vás”, diz a mãe, “que o teu pai é porteiro no ministério e se alguém sabe dás-lhe cabo da vida”. Jaime chega a casa e encontra Marta sentada no sofá entre Fernando e Dina, a cara dela não lhe é estranha. Desajeitado, Fernando segura uma faca junto ao pescoço de Marta. Dina é dona do salão de cabeleireira duas ruas abaixo, aquele sempre vazio, “antes pedir que roubar”, pensou quando, encolhida de vergonha, arrastou Fernando, companheiro de uma vida, desempregado há tempo demais, está velho, dizem, que não, diz ele, só tem 52, veio pedir ajuda para comer. Não foi a recusa, foi o olhar, de repulsa, não foi a recusa, foi o que disse, “se não tinha condições não devia ter tido filhos”. Fernando e Dina são os novos donos do frigorífico, vão ficar dois ou três dias, ver o que podem levar e partem para junto de Rosa, na Suíça, para nunca mais. Todos têm de fazer sacrifícios. A Jaime e Marta tocou-lhes a vida. Henrique fez 50 anos na semana passada e não tem nada, valiam-lhe os filhos levados pela assistência social, estão melhor. Quando deu por si estava rodeado de gente, Pedro apertava-lhe a mão e sorria para a TV, que sim, que já via uma luz ao fundo do túnel, que o esforço colossal iria valer a pena. Se ao menos Henrique não tivesse na mão o saco de plástico com as ferramentas da oficina em que já não trabalha… Não pensou. Fez. Mas se tivesse pensado o resultado seria o mesmo. A multidão calou-se ou é ele que não a ouve. Pedro já não é Pedro. Em Paris, José sente um arrepio. Teófilo, que perdeu a conta ao dinheiro que tem, telefona a Francisco, opositor de Pedro, “o meu apoio, uma oferta que não pode recusar”. O mundo gira, como ontem… E, no entanto, há algo que cresce…