- Escute - pede Martin -, já está livre de tudo, percebe? Livre de tudo!
- Mas ele é inocente! - protesta ela, referindo-se ao indivíduo que prenderam por engano.
- Bem, ele é inocente disto, mas é culpado de mil outras coisas, por isso não importa. Dê por onde der, não importa. Você tem a sua família - diz ele a Lucia -, tem de pensar naquilo que é bom para todos; esqueça-se dele. Seria inútil sacrificar a sua família por um homem que não é bom, que merece o que lhe está a acontecer e mais ainda; se o castigarem por isto, será a única coisa útil que fez em toda a sua vida. Não pretendo pensar na justiça ou injustiça do caso. Não se trata da classe de pessoas que você conhece, mas sim da classe de pessoas que eu conheço. E é assim que tem de ser. Aquilo que tem de fazer, Lucia, é o mais acertado.
Embora sem o saber, e nem precisa de sabê-lo, Martin está a adoptar em tudo isto (e convidando Lucia a fazer a mesma coisa) uma atitude consequecialista na hora de julgar um acto: escondemos a verdade, propõe ele a Lucia, porque dizer a verdade nestas circunstâncias seria o mesmo que arruinar a sua maravilhosa vida familiar. Se, pelo contrário, nos dá para adoptar uma atitude mais ortodoxa (deontológica), se pretendemos julgar as nossas acções pela sua conformidade, ou não, com as normas legais, teremos salvo da prisão uma pessoa que não o merecia e teremos condenado ao sofrimento aqueles que também não o merecem, os seus familiares. Talvez seja injusto, mas o mundo será melhor se cometermos esta injustiça; haverá mais felicidade nele do que se agirmos obedecendo a inflexíveis posições de princípio.
Trata-se, sem dúvida, de uma interessante (e difícil) questão (...): decidir se se deve ajuizar uma conduta tendo em vista exclusivamente se ela se adapta ao que está prescrito pelo dever, ou se, pelo contrário, há que avaliá-la tendo em conta os seus efeitos previsíveis e a sua repercussão sobre o bem-estar global. Neste filme, e na situação concreta nele esboçada, Martin está convencido de que o melhor é guiar-se por este último critério, e consegue convencer Lucia do seu ponto de vista. Algo assim teria feito Kant dar voltas na sepultura; mas também pode acontecer que a teoria moral kantiana não esteja de acordo com todas as nossas situações morais acerca daquilo que se deve fazer em ocasiões específicas, muito ricamente matizadas por pormenores que não são assim tão irrelevantes - como Kant pretende fazer-nos crer - para a produção de um juízo moral competente.
(texto de Juan Antonio Rivera, O que Sócrates diria a Woody Allen, Tenacitas, Coimbra, 2006)
The Reckless Moment (1949), de Max Ophüls, com Joan Bennet e James Mason.
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