Um outro olhar sobre o mundo

Um outro olhar sobre o mundo

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Isto é quase sobre o 25 de Abril


Andava eu pelos quinze anos e corria 1988. Frequentava o décimo ano do curso de Humanidades e era uma sala cheia de mulheres, cinco tipos para cerca de vinte raparigas. E isso era bom.
Cresci numa família em que a política sempre esteve sentada à mesa e os adjectivos não se poupavam aos seus piores intérpretes, aqueles que se iam anafando com o poder sem ligar pataco ao povo eleitor. Dia-sim-dia-sim, uma discussão com o meu pai, egocentrismo adolescente versus cristalização de ideias própria da idade adulta, luta de titãs, iludia-me eu, na realidade, apenas arrogância e euforia do puto que dava os primeiros passos no uso da razão. Mas isso sei eu agora e sabia já ele na altura. Falta-me ele e a sua argumentação irritante. Haveria de achar piada a esta coisa amorfa que vivemos, penso que podia até, veja-se bem como o mundo é composto de mudança, dar-lhe razão, pelo menos numa coisa ou outra menos importante. Nunca dei o braço a torcer. Gosto de pensar que nisso sou parecido com ele. E sinto que isso é bom.
Por essas e por outras, o 25 de Abril nunca me foi estranho, tal como o antes e o depois e o entendimento do que significava a privação de liberdade e a conquista da mesma.
O passado é uma coisa mutante, uma mescla de realidade-que-já-não-é com imaginação-criativa-e-tendenciosa-que-gostávamos-que-fosse. Ainda assim, tenho em mim a imagem, mais ou menos distinta, de uma turma de Humanidades curiosa e interventiva. Havia pessoas com ideias e convicções, não tão boas como as minhas, claro está, mas estavam lá e havia luta. E isso era bom.
Calhou-me em sorte uma professora de Filosofia demasiado jovem que volta e meia se esquecia dos rapazes numa turma que era um mar de raparigas e embarcava por conversas e gestos que, mais não fosse, nos traziam de volta da Lua à sala de aula. E isso era bom. No ano seguinte, o azar compensou-nos com um professor de formação padreca.
Sentado na última carteira, com vista para a rua incluída no pacote, a atenção era só a necessária. Ao meu lado estava o Nuno, dois anos mais velho e a mesma atenção. Já nos tínhamos cruzado, mas foi nesse ano que nos conhecemos. Na teoria, trazíamos o manual em aulas alternadas, na prática acertámos meia-dúzia de vezes. Continuo a ver o Nuno de vez em quando, não convivemos, mas ainda o tenho como amigo. Acredito que ele pensará de forma semelhante. E isso é bom. Vou enviar-lhe este texto.
Numa dessas aulas de Filosofia, sei lá a propósito de quê, disse-me o Nuno que o seu pai tinha festejado o seu nascimento em plena Serra da Gardunha, às escondidas, com três ou quatro amigos de confiança. Que fazê-lo em casa era arriscado, não era dia de alegrias e festejos, mesmo a pretexto do berro para a vida do primogénito. Alguém ouviria e chamaria as autoridades. As paredes tinham mais ouvidos que hoje. E olhos também.
O Nuno nasceu a 27 de Julho de 1970, dia da morte de António de Oliveira Salazar. Faltavam quatro longos anos para o 25 de Abril, as pessoas ainda se confundiam muito quanto aos direitos e deveres e a liberdade era uma coisa estranha. Ainda hoje as pessoas se confundem quanto a isso tudo. E isso é mau.
Sei bem que há muitas outras histórias, bem mais importantes e sérias, terríveis, sobre a ditadura e o 25 de Abril. Mas a liberdade, ou a falta dela, também se constrói de pequenas coisas com significado. Um pai e a alegria escondida do primeiro filho. Coisas para não apagar nunca. Para que não volte a ser mau.
Nuno, gosto de pensar que ando perto da verdade. Faz de conta, que nem me digas o contrário, afinal, o passado é o que queremos fazer dele.
Como o 25 de Abril.
Como o futuro.
A jogada volta a estar do nosso lado.

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