«Estamos a mudar de casa, a dormir na casa antiga e a transformar a casa nova, que era tão bonita, quando estava vazia, numa instalação anos 70 de pilhas de livros.
Saem caros e dão trabalho os livros que mudam de casa muitas vezes. Sofrem com as mudanças mas eu sibilo, entredentes, que é bem feito. É um pesadelo no verdadeiro sentido da palavra: é como aqueles sonhos em que se tenta fazer sempre a mesma coisa, sempre sem conseguir.
As pessoas que não percebem nada de livros e aquelas que "adoram" livros e acham que têm "imensos" porque têm umas centenas e "não têm onde arrumá-los"; que "amam" o cheiro dos livros e "não resistem" quando entram numa livraria; que eram "incapazes" de ter um Kindle porque "não prescindem" do peso e da "sensualidade, quase", de ter um livro impresso nas mãos, que folheiam como quem dedilha uma harpa ou uma peça de genitália; essas pessoas não se cansam de nos confortar, dizendo-nos que, quando os livros estiverem todos arrumadinhos (que nunca ficam), vamos sentir-nos em casa, contentes que cada livro está outra vez no lugar que era o dele.
É mentira. Os livros são uma praga. Quem tem o vício deles não se contenta com lê-los e tê-los. Precisa sempre de livros novos. E não prescinde dos velhos - mesmo daqueles de que não gostou muito e que tem a certeza de que jamais irá reler.
Que são a grande maioria. Aquela que se transporta. Aquela que mortifica. Aquela que revela a nossa futilidade. E despesa.»
(Miguel Esteves Cardoso, Público - 17/06/12)
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