Um outro olhar sobre o mundo

Um outro olhar sobre o mundo

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sempre é tarde



Por ter crescido com as telenovelas brasileiras, não consegui ainda entranhar as suas congéneres nacionais. Confesso que as minhas tentativas têm sido pouco mais que nulas, não suporto o amadorismo e cabotinismo de alguns intervenientes, mas sobretudo a falta daquela luminosidade encantatória que as nossas não têm. Diz um amigo mais entendido que à imagem lhe colocam os portugueses um “filtro de saída”, dando-lhe aquele ar baço ou insosso. O motivo cai no segredo dos deuses e a culpa bem pode ser minha. Bem sei que as telenovelas não são todas iguais e a generalização precipitada é algo de que devemos sempre acautelar-nos. De resto, faz tempo que não vejo telenovelas, de umas e de outras.

            Mas vem isto a propósito de Gabriela, não a original dos anos setenta com a imor(t)al Sónia Braga, de que retenho apenas breves mas agradáveis flashes, provavelmente construções minhas, mas o remake de 2012 com a mais robusta (ou grosseira) Juliana Paes. Vem isto a propósito do último episódio desta nova Gabriela e de como há frases ou instantes que nos apanham desprevenidos, se arrastam em nós e teimam em não nos largar. Como que nos suspendem o real imediato, mas numa suspensão reflexiva, e não pasmada, que pode brotar do mais corriqueiro ao nosso redor. Não que algo com origem num texto de Jorge Amado possa ser corriqueiro, longe disso.

            No último episódio de Gabriela, mesmo no final, encontramos o Coronel Ramiro Bastos (António Fagundes) sentado na praça central de Ilhéus, uma daquelas pequenas cidades brasileiras de fantasia que acreditamos reais, à espera que, a mando seu, seja assassinado o Doutor Mundinho Falcão, rival político e desencaminhador de netas prendadas. Apanha sol na praça, como de costume, mas desta vez para não levantar suspeitas, em jeito de álibi. A tocaia está montada e Ramiro, Coronel autoproclamado, está feliz, as coisas começam a endireitar-se, ou começarão, mal o desafiador seja eliminado e tudo volte ao “como era antes”, à ordem normal das coisas. Está feliz e fala sozinho, dessas coisas que só nas novelas é possível sem passar por idiota, na verdade fala para nós, explicitando-nos um estado de espírito que nós já adivinhamos, que já sabemos. Depois de décadas como senhor absoluto do destino de um povo, prepara-se para ganhar as suas últimas eleições e partir para uma justa reforma junto da “sua” Maria Machadão, puta de sempre e amante sempre adiada.

            Agora é o momento.

            “Demorei para decidir, mas nunca é tarde”, diz, “nunca é tarde”!

         Depois, uma dor súbita no lado do coração, um esgar no rosto, uma impressão no braço esquerdo, resiste, tenta sobrepor-lhe a felicidade, aguenta, não consegue, ele sabe, o mundo cai-lhe à volta, fica difuso o que há pouco era claro e brilhava, é o futuro que lhe escapa naquele banco ao sol…

            O “nunca é tarde” de ainda agora transfigurado em “sempre é tarde”.

            “Sempre é tarde!”, diz… Escapa-se-lhe.

            O passado a tombar o futuro, o que não foi a comer o que será e um último pensamento para a neta.

            Ramiro morre.

            E morre sabendo que foi débil. Débil na vontade de inaugurar uma outra pessoa que poderia ter sido. Qualquer momento é tão bom como qualquer outro para começar. Qualquer dia. Hoje não, amanhã, ou depois, só mais isto, não posso deixar de… Como a linha do horizonte que se afasta à medida que nos aproximamos. Continuamos a deixar passar o momento. Qualquer dia. Amanhã é também um bom dia para continuar a adiar. Indefinidamente, sem repararmos que o passado morde cada vez mais forte, até ao dia em que nos apanha, num banco de jardim ao sol, num café a passar os olhos pelas notícias do dia, na cama enquanto fazemos planos para aquela viagem, aquele amor, o futuro, hoje como antes, muito antes, quando o futuro era só possibilidade, sem por um instante pensar que é um futuro que não virá mais.

            Como Ramiro.

(ver aqui em baixo a cena de que se fala)
http://globotv.globo.com/rede-globo/gabriela/v/coronel-ramiro-bastos-morre/2211055/

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Nagisa Ôshima (1932–2013)


O realizador japonês Nagisa Oshima morreu na passada terça-feira, um dos nomes-chave da “nova vaga” japonesa conhecida como nuberu bagu, iniciada em finais dos anos 1950.  Depois da sua estreia na longa-metragem em 1959 com Ai To Kibo No Machi, Oshima torna-se daí em diante num dos mais prolíferos cineastas de uma década fértil em convulsões na arte e na sociedade nipónica. Filmes como O Enforcamento, Noite e Nevoeiro no Japão ou Cerimónia Solene são ferozes investidas contra uma sociedade burguesa, armadas de sexo e política. Conhecido em Portugal principalmente pela polémica que suscitou a transmissão televisiva de O Império dos Sentidos (1976), no início da década de noventa, Oshima tem muitos outros motivos de interesse, como este Feliz Natal Mr. Lawrence (1983), com David Bowie e música de Ryûichi Sakamoto.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O Camaleão faz 66 anos... e tem coisas novas!



Consequencialismo em The Reckless Moment (1949) de Max Ophüls



- Escute - pede Martin -, já está livre de tudo, percebe? Livre de tudo!
- Mas ele é inocente! - protesta ela, referindo-se ao indivíduo que prenderam por engano.
- Bem, ele é inocente disto, mas é culpado de mil outras coisas, por isso não importa. Dê por onde der, não importa. Você tem a sua família - diz ele a Lucia -, tem de pensar naquilo que é bom para todos; esqueça-se dele. Seria inútil sacrificar a sua família por um homem que não é bom, que merece o que lhe está a acontecer e mais ainda; se o castigarem por isto, será a única coisa útil que fez em toda a sua vida. Não pretendo pensar na justiça ou injustiça do caso. Não se trata da classe de pessoas que você conhece, mas sim da classe de pessoas que eu conheço. E é assim que tem de ser. Aquilo que tem de fazer, Lucia, é o mais acertado.

Embora sem o saber, e nem precisa de sabê-lo, Martin está a adoptar em tudo isto (e convidando Lucia a fazer a mesma coisa) uma atitude consequecialista na hora de julgar um acto: escondemos a verdade, propõe ele a Lucia, porque dizer a verdade nestas circunstâncias seria o mesmo que arruinar a sua maravilhosa vida familiar. Se, pelo contrário, nos dá para adoptar uma atitude mais ortodoxa (deontológica), se pretendemos julgar as nossas acções pela sua conformidade, ou não, com as normas legais, teremos salvo da prisão uma pessoa que não o merecia e teremos condenado ao sofrimento aqueles que também não o merecem, os seus familiares. Talvez seja injusto, mas o mundo será melhor se cometermos esta injustiça; haverá mais felicidade nele do que se agirmos obedecendo a inflexíveis posições de princípio.
Trata-se, sem dúvida, de uma interessante (e difícil) questão (...): decidir se se deve ajuizar uma conduta tendo em vista exclusivamente se ela se adapta ao que está prescrito pelo dever, ou se, pelo contrário, há que avaliá-la tendo em conta os seus efeitos previsíveis e a sua repercussão sobre o bem-estar global. Neste filme, e na situação concreta nele esboçada, Martin está convencido de que o melhor é guiar-se por este último critério, e consegue convencer Lucia do seu ponto de vista. Algo assim teria feito Kant dar voltas na sepultura; mas também pode acontecer que a teoria moral kantiana não esteja de acordo com todas as nossas situações morais acerca daquilo que se deve fazer em ocasiões específicas, muito ricamente matizadas por pormenores que não são assim tão irrelevantes - como Kant pretende fazer-nos crer - para a produção de um juízo moral competente.

(texto de Juan Antonio Rivera, O que Sócrates diria a Woody Allen, Tenacitas, Coimbra, 2006)

The Reckless Moment (1949), de Max Ophüls, com Joan Bennet e James Mason.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Arbeit Macht Frei?



Arbeit Macht Frei?

Num ou noutro texto publicado por aí, mais se falarmos de internet, vai circulando a ideia do inevitável fim da sociedade do trabalho. Afinal, o trabalho não constituí a satisfação de uma necessidade, mas apenas o meio para satisfazer outras necessidades, disse-o Marx, o Karl, mas bem podia ter sido o Groucho. O trabalho é uma maçada e isso do “sou feliz é a trabalhar” coisa de quem pouco mais fez, dita da boca para fora para evitar que nos tomem por mandriões. Tirando as excepções em que o trabalho se vai confundindo com o prazer, ninguém gosta de trabalhar. Devia ser um hobby.

Até meados dos anos sessenta do século passado, podemos dizer que o trabalho libertava da fome, do frio e, em alguns casos, de uma condição social desfavorável. Hoje o trabalho já não liberta do que quer que seja e nunca mais chegará para todos. Tal como previsto em inúmeras obras de ficção científica mais ou menos distópica, a produção de riqueza já descolou da força de trabalho humano. Com as novas tecnologias, a sociedade assente no trabalho atinge o seu limite histórico. Todavia, mudou a realidade, mas permanecemos, à esquerda e à direita do espectro político, manietados pelo dogma do trabalho e do homem reduzido a animal laborans ou objecto mercantil. O trabalho foi-se esvaziando de conteúdo e o orgulho do trabalhador posto de lado, restando a simples obrigação, princípio abstracto que se impõe de forma coerciva sobre toda uma sociedade. Estes são os tempos do trabalho pelo trabalho e do homem degradado ao estatuto de escravo dócil, a um instante de ser substituído pela máquina. Todo aquele que não consegue vender a sua força de trabalho e encontrar o seu lugar na engrenagem cai fora do contrato social e torna-se dispensável, lixo social.
O trabalho já não liberta do que quer que seja, deixou de ser o meio que nos permite usufruir de nós ou do tempo para nós com autonomia. Com o advento da indústria, o trabalho assumiu uma importância desproporcionada sobre tudo o resto, converteu-se na essência negativa do homem e estabeleceu um novo apartheid social, a tal ponto que é melhor ter um trabalho qualquer do que nenhum, por mais sujo, escravizante ou absurdo. Entretanto, vão os governos, em modo decorativo, simulando um trabalho em vias de extinção, anunciando programas de formação e ocupação supérfluos e redundantes ou chegando ao ponto de cortar no subsídio de desemprego e no apoio social como incentivo para o regresso a um trabalho que já não existe. Perpetua-se o mantra que nos incorporaram como se da nossa natureza se tratasse, repetido à exaustão, é melhor ter um trabalho qualquer, é melhor ter um trabalho qualquer, com qualquer salário, em qualquer lugar, sem qualquer prazer, sem qualquer utilidade, a qualquer custo. Passando por cima de todos num sistema auto-repressivo que divide, nos divide, de um lado os que ainda têm trabalho e do outro os parasitas.“A civilização não tem lugar para os ociosos”, concretiza-se a profecia fordiana e assume-se uma sociedade de açaimados pelo trabalho ou pela caridade.
Estará a única saída na libertação social da dependência do trabalho e na alteração do modo como se concebem as sociedades, deixando de tomar de forma exclusiva o trabalho como princípio organizador da vida individual e colectiva, deixando de impor ao sujeito a responsabilidade de procurar algo que já não existe, descartando a lógica de qualquer trabalho a qualquer custo e substituindo-o por um “rendimento mínimo de prosperidade e dignidade”. Não se trata de acabar com o trabalho, apenas de aceitar que não mais existirá para todos, permitindo àqueles que o desejam e mereçam ser por ele recompensados, mas providenciando a todos os demais a possibilidade de viver livres da obsessão pelo trabalho, banindo de vez o termo “desemprego” e tudo o que de negativo lhe vem acoplado.
Ideia disparatada ou ingénua, dirão quase de imediato os interessados em perpetuar um sistema que arrasta milhões num estado de semi-vida que corrói toda uma convivência democrática que levou demasiado tempo a construir. Os mesmos que até aqui nos trouxeram e que persistem agora na receita do inevitável, tão útil como uma aspirina para um tiro na cabeça.
Não é uma ideia original, que cada vez as há menos, mas vai alastrando, exigindo uma reformulação total da segurança social e da forma de pensar, uma mudança para um paradigma que assente na reflexão e no sentido crítico, algo cada vez mais remoto, quando, a cada dia, nos é imposta uma definitiva visão do mundo na qual somos escravos do trabalho ou estamos desempregados. Só assim será possível inventar um mundo para além da ditadura do trabalho e do dinheiro, um mundo sem a castradora separação entre o sujeito-económico e o sujeito-cidadão, causa principal do conformismo político. Porque uma democracia forte deve firmar-se sobre a preocupação que pressupõe ver o outro como ser humano e não como objecto (Martha Nussbaum), investindo num modelo social que promova a formação integral do ser humano. Sem deixar ninguém de fora. Sem deixar ninguém para trás.
Ou aceitamos o retrocesso a uma qualquer forma de vida semelhante à feudal, ou arriscamos algo novo, na tentativa de restaurar a dignidade do homem e uma vida com sentido.

Miguel Cardoso